Eduardo de Araujo Carneiro[1]
O cinema reproduz a realidade? Ou é um discurso e, portanto, um discurso ideológico, sobre a realidade? Se o cinema é um discurso, os cineastas procuram mascarar este fato? Ou ao contrário, procuram revelar claramente aos espectadores a natureza do discurso cinematográfico?
(Ismail Xavier. O discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência).
O discurso histórico não é senão uma cédula a mais numa moeda que se desvaloriza. Afinal de contas não é mais do que papel. (Michael De Certeau. A escrita da História).
Tendo em vista que esse filme é geralmente trabalhado em sala de aula por professores de história como um relato mais ou menos fiel dos “Anos de Chumbo”, o presente artigo foi escrito com o propósito de discutir, a partir dele, a questão da subjetividade e da incompletude da linguagem enquanto uma materialidade discursiva utilizada para representar os fenômenos históricos.
Para começar, a fronteira entre as representações do real feitas por um livro de história e as feitas por uma cena cinematográfica não é tão nítida quanto parece se estudá-la a partir da linguagem e da produção de sentidos. Tanto a linguagem escrita, quer seja a científica ou a literária; quanto a audiovisual, quer seja a ficcional ou o próprio documentário; fazem uso de símbolos para comunicarem idéias. E como já se sabe (BAKHTIN, 2006), a linguagem é a principal via por onde a ideologia se manifesta.
Os fatos históricos representados chegam ao espectador de um filme por meio do poder simbólico da linguagem. E é bom que se diga que a linguagem não é limitada ao verbal, pois o “não-verbal” ou o audiovisual tem tanto poder comunicativo quanto a própria língua, que desde os fins dos anos 1960, deixa de ser estudada com a sistematicidade dos tempos “áureos” do estruturalismo saussuriano.
A afirmação de que a língua traz consigo vestígios temporais e valorativos foi duramente negada pelo linguista suíço Ferdinand Saussure (1995) e seus discípulos que a consideravam como um sistema impermeável à subjetividade humana, ou seja, era culturalmente neutra. No entanto, com a crise do estruturalismo após a segunda metade do século XX, o estudo da subjetividade alcançou a linguagem. Hoje, não há mais espaço para imparcialidade, transparência, monossemia ou invariância no campo do estudo da linguagem, seja qual área for. E é por isso que a escrita da história e a película cinematográfica fazem parte dessa discussão, pois ambas são formas diferenciadas de materialidades discursivas.
Tanto o livro Batismo de Sangue escrito por Frei Betto, quanto o filme homônimo de Helvetio Ratton produzido a partir do livro são vistos aqui como meros efeitos de sentidos que enfocam a realidade, ou seja, são simplesmente representações de fatos históricos. É bom dizer que esse é um posicionamento teórico contrário ao daqueles que consideram o filme como um registro fiel dos fatos históricos.
Com a expressão “efeitos de sentidos” pretende-se dizer que ambas as materialidades discursivas foram geradas a partir de posicionamentos ideológicos, de tomadas de decisões, ou seja, que elas estão saturadas de subjetividades. E é exatamente esse fenômeno que o artigo pretende mostrar, por isso o título “Nos rastros da subjetividade”.
O linguista russo Mikhail Bakhitin (2006) afirmou que todo signo é uma arena de luta de classe. Isso talvez queira dizer que o sentido “desejado” ou “dicionarizado” do signo se estabelece mediante contestação ou alternativas. Ou seja, o sentido não é fixo, ele pode sofrer deslize mediante mudanças das relações de poder que o estabeleceu. Nesse caso, só aparentemente o signo tem uma significação imóvel.
A hipótese levantada aqui é a de que toda monossemia ou interpretação única é uma construção naturalizada ideologicamente. O jamais-dito ou os sentidos interditados fazem parte da história dela. São latentes a ela. Poderão emergir caso sejam suscitados. Assim sendo, qualquer verdade não passa de uma “vontade de verdade”. Um discurso histórico inscrito num livro ou num filme, portanto, expressa tão somente uma “vontade de verdade”, pois, embora negue, está atravessado por relações de poder e ideologias.
É o caso do nosso objeto de estudo, o filme “Batismo de Sangue”. Nele, o discurso histórico foi pasteurizado pela indústria cinematográfica com as características do gênero dramático, valorizando a visão antagônica de mundo, e narrando uma história do bem contra o mal, do herói contra o bandido. O objetivo comercial foi obvio: atingir a maior bilheteria possível no mercado, fato não alcançado a contento.
O “pano de fundo” histórico do filme é o posicionamento político dos dominicanos com relação à Ditadura Militar e o apoio que deram ao grupo guerrilheiro do senhor Carlos Marighella, conhecido como Aliança Nacional Libertadora (ANL). Nele, os comunistas foram identificados como os “bons-mocinhos” e os ditadores como os “bandidos”. Se a intenção era conscientizar o telespectador, o maniqueísmo levado à beira do exagero acabou tendo efeito contrário.
A decisão de “heroificar” os comunistas pode ser explicada pelo fato de tanto o escritor do livro, quanto o diretor do filme homônimo, serem, na época, anticapitalistas. Ao classificar os comunistas na “luz” e os ditadores nas “trevas”, é possível que o autor dominicano estivesse querendo justificar o apoio que os religiosos deram aos ateus comunistas. Enfim, querendo ou não o discurso acabou se tornando um autoelogio.
O filme não mostrou uma realidade multifacetada onde aspectos terríveis poderiam ser encontrados nos dois lados, ou seja, na dos comunistas e na dos militares. A idéia que o filme transmite é a de que os “heróis comunistas” sofreram as perseguições dos “bandidos militares”. Os primeiros lutavam em nome do bem, do povo, da liberdade, da igualdade social, da paz; e os últimos, defendiam tudo o que não se é digno nem de mencionar.
Não teria os comunistas também assassinado? Roubado? Sequestrado? Torturado? Praticado o autoritarismo em suas estruturas políticas altamente hierarquizadas? E isso sem dizer das experiências comunistas fora do Brasil, onde a ditadura e a perseguição política também foram práticas comuns. A intenção aqui não é equalizar tudo. Mas evidenciar desejos, intenções e sentidos “sufocados” ou “possíveis” na narrativa materializada nos diálogos dos sujeitos históricos do filme.
O filme analisado é modelar para tornar evidente a parcialidade como marca constitutiva da linguagem cinematográfica. Independente do gênero, na tela do cinema, “jorra subjetividades”. Diante dela, todos são convocados a se posicionarem. E ao fazerem assim, surge a possibilidade do “deslizamento de sentidos” com relação à “vontade de verdade” do discurso histórico da narrativa do filme. Ou seja, o telespectador pode não concordar com a versão dada pelo filme ou interpretar de uma forma diversa à da intenção original do diretor.
A história está ligada a práticas e não ao tempo em si. Ela se organiza tendo como parâmetro as relações de poder e de sentido, e não a cronologia: não é o tempo cronológico que organiza a história, mas a relação com o poder [...] Atua sobre a linguagem e opera no plano da ideologia, que não é assim mera percepção do mundo ou representação do real (ORLANDI, 1990, p. 35).
Sabendo que “a multiplicidade de sentidos é inerente à linguagem” (ORLANDI, 1988, p. 20), fica mais fácil de entender que todo o processo que estabelece uma dada interpretação como “autorizada” é ideologicamente marcado e, portanto, impregnado de subjetividades. É por isso que atualmente se diz que “a história é o reino do inexato” (LE GOFF, 1992, p. 21) e que “o passado é uma ficção do presente” (DE CERTEAU, 1982, p.21). Não há mais espaço para “verdades” nos estudos da história.
O roteiro de Batismo de Sangue condensa uma extensa pesquisa histórica realizada em documentos oficiais, nos testemunhos de quem viveu os fatos narrados, em livros sobre o período, arquivos de fotos, noticiários de TV, jornais, revistas, filmes rodados na época e documentários [...] Sem querer dar aula para ninguém, buscamos contextualizar os acontecimentos e passar informações sobre aquele momento histórico de forma orgânica, no desenrolar da narrativa [...] Embora trate de acontecimentos políticos, o roteiro de Batismo de Sangue não foi concebido para dar lições de moral ou defender certa visão do mundo. O que nos interessava era extrair da história vivida por aqueles homens um conhecimento mais profundo da vida, da condição humana e do passado recente de nosso país. (RATTON, 2008).
Não é tão difícil rastrear a subjetividade que atravessa o vídeo. O diretor e também co-roteirista do filme foi uma vítima da perseguição quando era um jovem militante de esquerda do movimento estudantil em fins dos anos 1960. O escritor do livro do qual o filme se baseou, também. O pai de Dani Patarra, roteirista do filme, foi o chefe de redação da revista em que Frei Betto teve o seu primeiro emprego como jornalista. Há uma cena no filme que, inclusive, mostra uma conversa entre os dois personagens.
Só essas informações bastariam para rastrear as imagens de si que estão no discurso histórico tanto do filme, quanto do próprio livro. Eles destacaram “o que era necessário recordar para não esquecer-se de si mesmos” (DE CERTEAU, 1982, p.16). Afinal, como característica geral de qualquer escrita da história, o autor dificilmente construirá um efeito do real contra si próprio.
O escritor do livro Frei Betto tentou criar uma imagem angelical dos dominicanos, afinal, ele era um deles. Utilizou de vários argumentos para explicar os motivos ideológicos que levaram tanto ele quanto os seus companheiros a apoiarem a guerrilha armada liderada por ateus, apoio considerado pela ortodoxia católica como uma infidelidade. Também tentou defender os dominicanos da acusação de terem “dedurado” o guerrilheiro Carlos Marighela aos agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).
Já o cineasta Helvécio Ratton pretendeu beatificar os perseguidos pela ditadura. Afinal, na época, foi um deles. Tentou provocar o imaginário dos espectadores com abundantes cenas de torturas físicas, sem, no entanto, demonstrar preocupação em historicizar tais práticas. Embora condenável hoje, a tortura era um instrumento confessional comum em diversos outros regimes políticos, mesmo que não institucionalizado oficialmente. Além do mais, a “tortura social” provocada por meio da adoção de uma política econômica geradora de miséria foi muito mais violenta e catastrófica no período da ditadura, mas que, no entanto, não foi merecedora de atenção.
A tortura é parte da estrutura dramática do roteiro, contada do ponto de vista do torturado, e usada não por sadismo, mas como instrumento de Estado para arrancar informações que mudaram o curso da História e aqui fazem avançar o filme. Suavizar a violência sofrida pelos dominicanos, torná-la mais palatável, seria uma traição à memória de Tito e ao testemunho de todos aqueles que passaram pelos porões da ditadura. Decidimos então mostrá-la de forma breve, as cenas de tortura duram poucos minutos no filme, mas com força suficiente para expressar toda a dor e humilhação sofridas. (RATTON, 2008).
O fato de a “mãe gentil” ter sido, desde a colonização, “estuprada” por brasileiros corruptos não-militares, não entrou na ordem do discurso (FOUCAULT, 2007). A participação de segmentos da sociedade civil, inclusive de muitos letrados, na legitimação do regime militar também não. Todo mal do Brasil ficou tipificado nos militares, mesmo num país em que a escravidão foi uma constante durante mais de 300 anos. Mas como já foi mencionado, o objetivo do filme não era estimular a reflexão crítica do telespectador sobre os fatos históricos ali representados. O jogo de interesses na formulação do roteiro ficou evidente ao optar-se pelo entretenimento a partir de cenas de tortura física e outras violências.
Como qualquer outro drama, o filme de ação “Batismo de Sangue”, propôs atrair a atenção do público com sensacionalismo. Não adianta procurar no roteiro um debate teórico sobre o comunismo, teoria que movia a “ação revolucionária” da maioria dos manifestantes civis da época. Muito menos da Teologia da Libertação, que embasava a práxis dos dominicanos protagonistas do filme. Tais discussões não aparecem. São interdições que “revelam logo, rapidamnte, sua ligação como o desejo e o poder” (FOUCAULT, 2007, p. 10).
O argumento defendido nesse artigo é o de que o telespectador se depara com representações do passado permeadas por subjetividades, intenções e desejos associados a uma visão de mundo pró-esquerda e não-militar. O que reforça a hipótese de que a produção de sentidos de modo geral sempre está controlada por posicionamentos políticos e ideológicos bem definidos.
Outro aspecto que merece ponderação é a genuinidade do cristianismo dos frades representados no filme. Tanto no livro, quanto no filme, os protagonistas afirmam agirem inspirados na fé cristã. Chegam a mencionar a tradição da igreja em auxiliar os pobres e perseguidos. Citam Tomás de Aquino, Paulo VI e até um certo concílio onde os bispos concluíram a favor da “violência revolucionária”. A trilha sonora “religiosa” do filme também aposta no imaginário dos protagonistas como sendo cristão. No entanto, embora pertencentes à “Ordem dos Pregadores”, eles não aparecem uma vez se quer evangelizando. Mas se destacam mobilizando pessoas para o congresso da UNE e outras atividades políticas.
Uma pergunta: estavam eles agindo em defesa dos direitos humanos ou da implantação do comunismo no Brasil? A maioria das organizações de lutas contrárias à Ditadura almejava o comunismo. Um dos grupos comunistas mais radicais era justamente o do guerrilheiro Carlos Marighella, a quem Frei Betto (1991) em seu livro defendeu tanto, e a quem os protagonistas do filme apoiavam.
O evangelho é compatível com o comunismo e com a luta armada? A bíblia apóia a morte do opressor para livrar o oprimido? Ser cristão é mentir quando é preciso como fizeram os dominicanos no filme? Era costume entre os frades sentir deleite ao ouvir uma música “não-religiosa” como aconteceu com o Frei Tito numa das cenas em que aparece ouvindo “Noite dos Mascarados” de Chico Buarque? Ou ter o vício de fumar, como era o caso de Frei Fernando? Seria normal para um cristão arrecadar dinheiro para fomentar a guerrilha, em vez de fazê-lo a uma igreja para a expansão do cristianismo?
O certo é que o posicionamento daqueles dominicanos não foi o da maioria dos católicos e nem a dos protestantes, que preferiram adotar como padrão de normalidade de fé cristã o próprio comportamento do fundador da religião, o do judeu Jesus “o Cristo”, cuja vida foi narrada nos evangelhos. Na biografia do judeu, não se tem evidências de que o mesmo excitou o povo contra o Império Romano. Nem que tenha mentido. Nem que tenha sido ouvinte de músicas laicas.
Dizer-se seguidor ou membro de uma religião faz da pessoa um religioso? Praticar algo em nome do cristianismo faz dela uma prática cristã? Agir em nome de Deus faz da pessoa uma porta-voz de Deus? Teriam eles agido como frades ou como jovens estudantes universitários? Sofrer torturas por causas sociais seria motivo suficiente para torná-los modelos de devoção cristã? Não teriam os ateus marxistas também padecidos?
Essas indagações servem como uma boa oportunidade para o debate sobre o conceito de identidade. De acordo com os Estudos Culturais da Pós-Modernidade, a identidade do sujeito é hibrida, varia de acordo com as circunstâncias e as formas como o sujeito é interpelado pelo sistema cultural que o rodeia. Desse modo, não se acredita mais num “eu” coerente, por exemplo, hegemonicamente cristão; mais num “eu” descentrado, que muda conforme as circunstâncias. Nesse caso, defende-se aqui que a identidade assumida por aqueles frades no período da Ditadura Militar não era a de cristão.
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. (HALL, 2204, p. 13).
A “Ordem dos Pregadores” não defendia que os fins “nobres” do comunismo justificassem os meios sanguinários da guerrilha. A ação circunstanciada de cinco frades pode ser tomada como estereótipo de todos os dominicanos? Caso a resposta for negativa, então o subtítulo do livro de Frei Betto deveria ser corrigido, já que nem todos os dominicanos compactuaram com os protagonistas do filme. E isso é mostrado discretamente quando entre uma cena e outra aparece na parede da “grande da porta” da Igreja do Convento os dizeres: “Fora padres comunistas”.
É interessante também o fato de que muitas foram as vítimas fatais da repressão e que o filme privilegia a história de uma que, após torturada, passa a ser atormentada pelos traumas, até que põe fim à própria vida por meio do suicídio. Essa vítima era um religioso dominicano. Entre os próprios dominicanos, vários foram os torturados, em maiores ou menores proporções. Mas seguindo o exemplo do livro de Frei Betto, o diretor do filme enfoca a vida de Frei Tito, até mais que o próprio livro.
Por que Frei Tito e não outro? O que fez dele um militante merecedor de destaque? Teria sido o fato de ele ser um católico que comungava com o comunismo? Não, pois outros também o eram. Seria por ter sido mais torturado do que os outros? Não, pois houve casos em que a brutalidade utiliza foi tamanha que levava o torturado ao falecimento. Muitos sofreram e venceram os traumas, por que a escolha de um que se rendeu a eles?
Depois de solto, Frei Tito viajou exilado para o Chile, Itália e França. Onde passava recebia apoio da irmandade. Financeiramente não tinha do que se preocupar. Tantas outras vítimas com bem menos apoio sobreviveram e continuaram com suas vidas, Frei Tito que desmoronou e cometeu suicídio foi protagonizado. Não é o tipo de herói ideal. Não é o tipo a ser seguido como referência.
Qualquer leitor superficial da Bíblia sabe que o Deus dos cristãos condena ao inferno aquele que comete suicídio. Como também sabe que a Bíblia afirma que o Deus dela se diz capaz de restaurar qualquer ferida emocional. O suicídio do frade aponta para algumas hipóteses: a) Frei Tito não fora capaz de desenvolver fé suficiente em seu Deus para receber a cura; b) ele teve fé suficiente, mas o Deus dele foi incapaz de curá-lo; c) ele não foi curado, pois o Deus dele não existe. O certo é que muitos ateus comunistas conseguiram superar os traumas, o que os tornavam melhores candidatos ao heroísmo do que Frei Tito. Então, por que Frei Tito? A resposta talvez seja pelo fado dele ter sido amigo íntimo de Frei Betto, e este ter sofrido muito com o suicídio do amigo.
É interessante, mas o filme se caracteriza mais pelas interdições que cometeu do que com as cenas que exibiu. A subjetividade que aflora dele é tão nítida quanto as imagens que é exposta na tela. Ela pode ou não se deixar enxergar, pois a recepção dos signos também é um ato de produção de sentidos. Afinal, “ler é saber que o sentido pode ser outro”, como diria Orlandi (1988, p.12).
É possível que o espectador enxergue algo no filme que não foi da intenção do diretor mostrar. O roteiro autoriza uma interpretação; mas o espectador crítico ao perceber a opacidade da linguagem, as lacunas, as brechas, as relações de poder, a incompletude, a vontade de verdade dele, se comporta como um infiel, produzindo deslizamento de sentidos, se refugiando na polissemia da linguagem.
Uma cena singular foi a da representação do assassinato de Carlos Marighella. Até hoje esse crime carece de explicação. Mas diante da incógnita, o roteirista teve que tomar uma decisão e optou por mesclar duas versões: a) a de que ele foi assassinado fora do carro onde estavam os dominicanos e depois posto lá dentro; b) a de que os agentes do DOPS chegaram até Carlos Marighella por informações dadas pelos frades Ivo e Fernando que, sob tortura, revelaram.
Várias são as cenas em que alguns comunistas acusam os dois frades de traidores e de “Judas”. Outro exemplo é o do próprio delegado Fleury (58 min.), quando diz que “quem entregou Marighella foram os dominicanos”. Mas em seu livro, Frei Betto esboça outra interpretação, pois afirma que “havia uma infiltração da CIA na ALN, cuja principal tarefa era liquidar Marighella” (1991, p. 177).
Esses agentes teriam envolvido os dominicanos no assassinato a fim de que eles levassem a culpa. O objetivo era desmoralizar a Igreja, instituição que, segundo o próprio Frei Tito dizia, era a única ainda não vinculada aos militares. É justificável a versão do autor do livro, não representaria a si mesmo como “traidor”. Mas o filme não a menciona esse versão. Muitos outros rastros da subjetividade autoral poderiam ser apontados, mas excederia ao espaço proposto a esse artigo.
Por fim, é preciso saber assistir ao filme, identificar sua retórica, o diálogo que pretende manter e aquele que se preferiu evitar. Os protagonistas, por exemplo, se diziam lutar pelo povo, mas o povo nem se quer os conheceu. O povo não teve vez nas cenas. Mas pelo menos naquela geração as ideologias moviam politicamente a juventude. Hoje, a alienação impera: cerveja, futebol, novela e outras coisas mais. Cadê os “Marighella”? Cadê os “Lamarca”? Cadê os “Frei Tito”? Procure, você irá encontrá-los nos cinemas! Ou nos cemitérios, caso alguém não tiver feito seus restos mortais desaparecerem.
“A resistência daqueles companheiros, utópica e romântica, ensina-nos a viver” (Dani Patarra , 2008).
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. 203 p.
DE CERTEAU. Michel. A escrita da História. RJ: Forense Universitária, 1982.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 15. ed. São Paulo: Loyola, 2007
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão (et all.). 2. ed. Campinas: UNICAMP, 1992.
ORLANDI, Eni. Discurso e Leitura. São Paulo. Cortez, 1988.
______. Terra à Vista! Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. São Paulo: Cortez, 1990.
RATTON, Helvécio. Notas do Diretor. In: PATARRA, Dani. RATTON, Helvécio. Batismo de Sangue (Roteiro). São Paulo: Impressão Oficial do Estado de São Paulo, 2008. (Coleção Aplausos).
PATARRA, Dani. Notas da Roteirista. In: PATARRA, Dani. RATTON, Helvécio. Batismo de Sangue (Roteiro). São Paulo: Impressão Oficial do Estado de São Paulo, 2008. (Coleção Aplausos).
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. 25. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília: UnB, 1998.
XAVIER, Ismail. O discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3º Ed. São Paulo. Paz e Terra. 2005
[1] É professor do Departamento de História da UFAC e Doutorando no convênio USP/UFAC.
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