quinta-feira, 3 de março de 2016

O ACRE "AMAZONENSE": o que todo acriano deveria saber



“A parte da zona acreana, que se estende ao Norte do paralelo de 10º20’, já era indubitavelmente brasileira antes do Tratado de 1903; nem nunca foi senão brasileira; e, sendo brasileira, necessariamente se havia de achar no Estado do Amazonas”. (Ernesto Leme. Prefácio. In: BARBOSA, 1984, p. XXV).

“Cria no Rio Purus dezenove prefeituras. Destas a décima sexta bem como a décima nona se estendem até ao Acre, e a décima oitava compreende todo o Iaco, da foz às cabeceiras, com os seus afluentes”. (Governador da Província do Amazonas, Ato Nº 185,  23 de  agosto de 1892, grifo nosso. Apud, BARBOSA, 1984, p. 150).

“A comarca de Floriano Peixoto que se constituía de todo o rio, desde a foz até as últimas explorações, foi criada depois da República e tinha como sede a vila de Antimary, a qual no aludido ano, foi transferida para um planalto à margem esquerda do Purus, em gente a embocadura do Acre [...] A nomeação do coronel Francisco Monteiro, [...] foi muito bem aceita no Acre”. (CARVALHO, 2002, p. 18).
         
Antes mesmo que a Questão do Acre surgisse, parte das terras banhadas pelo rio Aquiri já era tratada como brasileira pelo estado do Amazonas. No nível simbólico, portanto, o abrasileiramento do “Acre” já havia sido iniciado antes mesmo de o Acre existir enquanto comunidade de acrianos. Na verdade, a Questão do Acre começou como uma causa amazonense, a iniciativa de contestar a soberania boliviana não partiu do “acriano” ou do “brasileiro do Acre”. Assim sendo, o “Acre” é fundado como brasileiro como um “não-Acre”, na medida em que a brasilidade dele estava baseada no fato de ele (ou parte dele) ser tratado como jurisdição do município amazonense Antimarí, que depois ficou conhecido como Floriano Peixoto.
          O Acre não foi simplesmente uma dádiva dos acrianos. O papel do governo do Amazonas foi fundamental até mesmo para a exploração do rio Purus, que foi a primeira etapa para a colonização do Acre. A partir dos anos 1950, aconteceram as primeiras expedições de reconhecimento por parte de “diretores ou encarregados de índios” nomeados pelo governo da Província do Amazonas.
Elas tinham como objetivo provável a “pacificação” dos índios, e a obtenção de informações sobre a quantidade de seringueiras, de índios e de bolivianos naquelas plagas, no entanto, a justificativa para tal foi a descoberta de uma passagem fluvial livre de cachoeira e menos extensa para a Bolívia[1]. Após confirmada a ausência de bolivianos e o potencial gomífero da região, operou-se um intenso processo de invasão[2] na década de 1870.
Os famosos exploradores João Rodrigues Cametá, Serafim da Silva Salgado e Manuel Urbano da Encarnação, por exemplo, eram “diretores de índio” em missão oficial designada pelo governo amazonense. O primeiro saiu de Manaus em direção ao sul amazônico em março de 1852 e se tornou o primeiro brasileiro a explorar o rio Purus. Nesse mesmo ano, o segundo foi contratado e até onde se sabe o mesmo explorou o rio Purus até 10º 25’ de latitude sul, ou seja, ultrapassou o paralelo que definiria a fronteira do Brasil com a Bolívia com o Tratado de Ayacucho (1867). Em 1861, foi a vez do terceiro “diretor de índio” subir o rio Purus, conta-se que atingiu o rio Acre chegando até Xapuri.
Depois de feito o “zoneamento ecológico-econômico” da região pelos primeiros “desbravadores” contratados pelo governo do Amazonas, foi a vez de a iniciativa privada financiar os “colonizadores” para explorarem economicamente a região e pagarem os devidos impostos à alfândega amazonense. Em 1871, quando o Coronel Pereira Labrea chegou às margens do rio Acre, conta-se que ali encontrou “o posto do seringueiro Manuel Joaquim, donde foi ter ao Sítio Flor de Oiro, de Geraldo Correia Lima” (BARBOSA, 1974, p. 39). Em 1877-8 (?), foi a vez de João Gabriel de Carvalho e Melo juntamente com inúmeros outros chegarem à confluência do rio Acre com o rio Purus.
Pelo que se sabe, eles foram os primeiros “invasores” que operaram a extração e comercialização clandestina de borracha naquele território até então estrangeiro. “Em poucos anos, o rio Acre estava todo ocupado, e assim também o Purus, até onde existia a seringueira, ou seja, até onde é a atual fronteira com a República do Peru” (MELO, 1968, p. 105). O Estado do Amazonas incentivava a exploração econômica da região porque lucrava com a arrecadação de impostos sobre a exportação da borracha. Abaixo segue um Ato Governamental Nº 248, assinado pelo Presidente da Província do Amazonas em 12 de agosto de 1878, que comprova que o rio Acre era tido como parte da jurisdição amazonense.

Divide em duas a agência ambulante de rendas provinciais no Rio Purus: uma até Iutanaã, derradeiro ponto de escala dos vapores subvencionados, outra deste ponto até o Rio Acre, nomeando logo o serventuário para a segunda. (Apud BARBOSA, 1984, p. 144).

Em 5 de setembro de 1850, a Comarca do Alto Amazonas que até então fazia parte da Capitania Grão-Pará é elevada à categoria de Província. “Desde esse tempo, como daqui a pouco se verá das certidões autênticas dos atos do seu próprio governo, entra a nova Província a exercer jurisdição administrativa em paragens do Acre Setentrional” (BARBOSA, 1974, p. 11, Vol. 37, Tomo 6).
Como já foi visto, a Província foi quem “preparou o terreno” para a colonização das proximidades do rio Acre. Inclusive era ela quem expedia títulos fundiários na região. Povoada quase que exclusivamente por brasileiros, garantia a brasilidade daquele território pelo uti possidetis e pela constituição geográfica, uma vez que os Andes dificultava o acesso dos bolivianos. O grande advogado Rui Barbosa entrevistou vários ex-presidentes da Província do Amazonas a fim de saber sobre a real administração da região do rio Acre.

Todos estes documentos, em número de cento e oito, são autos de demarcação de terras devoluas, vendidas pelo Governo do Amazonas, sob o antigo regime e durante o atual no território do Acre [...] Autos nº 18, 1898, À margem do Rio Acre, Município Floriano Peixoto, solo devoluto vendido pelo Governo do Amazonas. Demarcante, Antonio Leite Barbosa. Demarcador, Domingos José Moers. (BARBOSA, 1975, p. 154 e 155).

Trechos dos depoimentos foram publicados (BARBOSA, 1975, p. 124-132) e ambos são uníssonos em dizer que a população do rio Acre estava sujeita à jurisdição amazonense: “autoridade de espécie alguma ali houve, a não ser nomeada pelo Governo do Amazonas” (ibidem, p. 129), “sendo sempre administrada e policiada pela antiga Província” (ibidem, p. 130).
Vários documentos e cartas da época,  remetidos da região do rio Acre ou destinados a ele, tinham como endereço “Antimary”, “Floriano Peixoto” ou “Lábrea”. Isso porque, em 1890, o município de Lábrea foi dividido e deu origem ao município de Antimary, que em 1897 passa a se chamar “Floriano Peixoto”. Serzedello Correa (1899, p. 138, grifo nosso) confirma que o governo do Amazonas já administrava o “Acre”, tal como comprova o trecho abaixo:

Ora, o Estado do Amazonas exerce plena e inteira jurisdição em toda essa região. A 32ª divisão distrital ou circunscrição política do Amazonas na Comarca de Lábrea estende-se desde o foz do Rio Teuni, por ambas as margens, até a boca do Rio Acre, inclusive. A 34ª principia na foz do Iaco e termina nos limites com o Peru pelo mesmo rio. Assim, pois, segundo a organização dos Municípios no Amazonas as regiões do Acre estão sob a jurisdição do seu governo: a prefeitura de Lábrea rege-as desde o Rio Purus até o Rio Mari, ou desde o Ituxi até o Teuni.

Não havendo um acordo imediato do Brasil com a Bolívia, foi consenso entre os bolivianos que a ocupação do território banhado pelo rio Acre ocorresse prontamente. Para tanto, Juan Francisco Velarde, delegado nacional da Bolívia, chega a Manaus em 11 de julho de 1899, para viabilizar a criação de um posto aduaneiro no rio Acre. Tocantins (2001, p. 225) conta que foi o governador do Amazonas Ramalho Júnior que impediu a fundação do referido posto alfandegário.
Além do mais, quando uma expedição militar boliviana aportou em Xapuri em setembro de 1989,  foi o subprefeito do Alto Acre, coronel da Guarda Nacional Manoel Felício Maciel, nomeado pelo Governo do Amazonas, quem  primeiro resistiu à soberania boliviana na região do Acre, intimando os bolivianos a saírem da região a fim de que fosse evitada uma guerra. Portanto, não foram os acrianos os primeiros a enfrentarem os bolivianos, a Questão do Acre surgiu como uma causa amazonense, conforme comprova o documento a seguir:

Comandante Superior da Guarda Nacional do Distrito de Floriano Peixoto, 13 de Novembro de 1898.

Cidadão Major Benigno Gamarra.

Tendo chegado ao conhecimento desta comandancia a invasivo desta fronteira por uma força armada, debaixo do seu comando, para fundar nestes rios Acre e Purus uma nova delegação policial boliviana e tomar posse desta grande parte do Brasil, sem que tenha sido ratificada a linha divisória, sendo essas regiões exploradas e cultivadas por Brasileiros, há mais de 30 anos, de posse mansa e pacífica sem oposição de natureza alguma, trazendo esse fato o terror pânico mais alarmante a esta parte da nação brasileira, prejudicando sumamente o comércio que em alta escala se desenvolve nesta terra a vista e considerando a grande distância em que se acha esta povoação do Governo Federal e Estadual e vendo que os habitantes daqui estão sobressaltados e sem meios de defesa, esta comandância resolveu de acordo com a lei da Guarda Nacional das fronteiras do Brasil, mobilizar-se provisoriamente e ir em defesa desta grande porção de Brasileiros [...] Manoel Felício, Coronel Comandante Superior.

          Em janeiro de 1899, os bolivianos mais uma vez tentaram criar uma alfândega no rio Acre, mais precisamente em “Puerto Alonso”.  Foram necessários apenas vinte e dois dias do estabelecimento do Posto Aduaneiro boliviano para que uma Junta Revolucionária fosse organizada com o fim de derrubá-lo. Pois, “para todos os efeitos, os bolivianos estavam na comarca amazonense de Antimary” (CARVALHO, 2002, p. 25). Por conta disso, houve um levante amazonense contra a delegação boliviana. Primeiramente, o superintendente de Floriano Peixoto (antigo Antimary) Francisco Monteiro de Souza Júnior pede oficialmente em ofício datado em 29 de abril de 1899, que o Cônsul boliviano Moisés Santivanez evite o conflito armado saindo daquela região.
Logo em seguida, José Carvalho, secretário do superintendente, encabeça aquilo que ele próprio chamou de “primeira insurreição acreana”, que teve como resultado a expulsão dos bolivianos. O rio Acre, portanto, já havia sido inventado como brasileiro, isso não foi obra dos acrianos, e sim dos amazonenses. A Junta Revolucionária criada naquela ocasião não era “acreana” e sim “amazonense”. O objetivo do levante não era a “independência” do Acre, mas a salvaguarda do território considerado amazonense[3].
A causa somente deixou de ser amazonense e passou a ser acriana com a proclamação da República do Acre. E isso apenas para dissimular a opinião pública nacional, pois, na prática, é do conhecimento de todos que o próprio governador do Amazonas foi o "idealizador e sustentáculo da República do Acre" (TOCANTINS, 2001, Vol. I, p. 440). Para acompanhar Luiz Galvez, o governador do Amazonas também contratou "vinte homens, todos veteranos da guerra de Cuba" (DANTAS, 2012, p. 23). Portanto, "Luiz Galvez, com dinheiro e armas do governo do Amazonas, seguiu para o Acre" (REIS, 1937, p. 19). Como é do saber de todos, a República do Acre tem vida curta e chega ao final em março de 1900.
Em julho de 1900, o novo governador do Amazonas, Silvério Nery, toma posse. Em novembro de 1900, financiou uma expedição militar de libertação do Acre nominada “Floriano Peixoto”, que também ficou conhecida como "Expedição dos Poetas", pela quantidade de intelectuais - “voluntários da pátria” sedentos de recompensas. Mais uma vez, a iniciativa para “libertar o Acre” não parte dos acrianos e sim dos amazonenses. O insucesso aconteceu novamente, apesar de estarem bem equipados com uma canhoneira e inúmeras metralhadoras fornecidas pelo governo amazonense, foram derrotados em poucas horas.
A “Revolução” liderada por Plácido de Castro também não foi diferente, embora mais discreta, porém, também houve participação do governo do Amazonas. Entretanto, como as “revoluções” a partir de Galvez assumiram estrategicamente uma postura separatista, o caráter amazonense delas foi dissimulado com o discurso do “acreanismo”.
          Em uma carta de 18 de junho de 1902, portanto, antes do início da “Revolução” iniciada em 6 de agosto, Rodrigo de Carvalho diz: “baldeamos a carga da Maria Thereza, a bordo dela vem o Dr. Gentil com armamento e um capitão com vinte e tantos soldados, commissionados pelo governador para fazer a revolução” (Apud OURIQUE, 1907, p. 223, grifo nosso).
          Se levarmos em consideração que o próprio Plácido de Castro afirmou ter iniciado o combate contra os bolivianos em 6 de agosto de 1902 com apenas 33 homens (Cf. CASTRO, 2005, p. 56), fica fácil deduzirmos que o episódio inaugural da “Revolução Acriana” ou da “Grande Revolução” foi protagonizado por mercenários contratados pelo governo do Amazonas.
O escritor Jacques Ourique na obra O Amazonas e o Acre publicou várias cartas enviadas por Rodrigo de Carvalho, Gentil Norberto e Plácido de Castro[4] ao governador do Amazonas Silvério Nery; e tantas outras que este enviou àqueles. Os primeiros pediam armas, munições, lanchas, comidas, etc. O último certificava-se do andamento do conflito e mantinha “viva” a missão de incorporar o território ao Estado do Amazonas depois da vitória.
Em uma das cartas consta que o governador do Amazonas havia despachado armas e outros mantimentos para a “Revolução”, sob a responsabilidade de Gentil Norberto (Apud OURIQUE, 1907, p. 223). No entanto, o mesmo havia se recusado a encaminhá-las aos combatentes por conta de discussões com Rodrigo de Carvalho (idem, ibidem, 1907, p. 224). A exemplo do que aconteceu na Expedição Floriano Peixoto, os revolucionários queriam repartir os “despojos” antes da vitória. Leia:

Por mais agradável que queira ser V. Ex. não posso sê-lo, ao ponto que o Dr. Gentil me disse para procurar com que os acreanos o façam Presidente [...] antes da vitória não se tratará de Governo, ficará a Junta Revolucionária até que se vença; vencedores os coronéis Joaquim Victor e José Galdino, que disputem quem será o chefe, se Victor ou Gentil: eu deixo o campo livre, pois nunca ambicionei a chefia (Carta de Rodrigo de Carvalho ao Governador do Amazonas datada em 24 de julho de 1902. In: OURIQUE, 1907, p. 227).

 Em 19 de janeiro de 1903, quase às vésperas da rendição incondicional do exército boliviano, Rodrigo de Carvalho envia uma carta ao governador do Amazonas alertando-o que havia uma "grande quantidade de pretendentes a governador do Acre e a cousa acabaria em briga grossa" (ibidem, 1907, p. 416). Isso é um forte indício de que Plácido de Castro realmente não era o líder político da “Revolução” e sim um militar a serviço da causa acriana. Se dado estava que o “novato” fosse o “mentor” da “Revolução”, como explicar a disputa que se deu entre os “veteranos” pela governança do futuro Poder Executivo acriano?
Para os líderes bolivianos, Plácido de Castro nunca figurou como o líder da Revolução. Ele era tido como um mero coadjuvante, assim como os outros membros da Junta Revolucionária. O verdadeiro responsável pela “Revolução” era o poder executivo amazonense. Segundo Zambrana (1904, p. 163), cónsul boliviano no Pará, “Silverio Nery, Gobernador de Amazonas, autor responsable y sostenedor de la revolución del Acre [...] Plácido de Castro, Rodrigo de Carvalho, Gentil Norberto y demás coautores de la citada revolución”.
Antes mesmo da vitória contra os bolivianos, dois grupos de interesse disputavam o governo do Acre: o dos grandes seringalistas e o dos liberais. O governo do Amazonas apoiava a causa acriana, porém temia o fortalecimento político dos seringalistas locais. Eles podiam resistir à incorporação do Acre ao estado do Amazonas. É por isso que o governador preferia os liberais como Gentil Norberto e Rodrigo de Carvalho e com eles mantinha contato. Ambos mantinham vínculos com os comerciantes e políticos de Manaus, tanto é que faziam rotineiras viagens à Manaus.
É relevante lembrar que a própria aclamação de Plácido de Castro como governador do Estado Independente do Acre só aconteceu por causa da bem-sucedida articulação que Rodrigo de Carvalho fez entre os seringalistas locais e o governador do Amazonas. Experiente como era na política, Silvério Nery já havia desconfiado das pretensões políticas de Plácido de Castro, tanto é que teve que ser convencido por Rodrigo de Carvalho de que o “novato” não resistiria ao plano de incorporar o Acre ao Amazonas, vejamos:

Plácido é indiferente que isso (o território do Acre) seja do Amazonas. A mim (Rodrigo de Carvalho) ele (Plácido de Castro) diz sempre: isso (o Acre) não pode ser estado; há de ser do Amazonas; já vê Vossa Excelência (Nery) que ele é amigo [...] Combinei com os oficiais em aclamarmos o Plácido governador [...] por isso, no dia da tomada de Porto Acre o Dr. Pimenta em nome dos acreanos vai aclamá-lo. Só assim teremos o Acre do Brasil e com certeza do Amazonas. (Rodrigo de Carvalho ao governador do Amazonas, apud OURIQUE, 1907, p. 417, grifo nosso).

Esse documento é mais um forte indício de que Plácido de Castro não era o líder político da causa acriana, mas que o sucesso militar e a conveniência política o fizeram governador do Acre. O apoio político de Rodrigo de Carvalho não era gratuito, ele queria minar as pretensões que Gentil Norberto nutria de ser governador do Acre. Com Plácido de Castro no poder, Dr. Rodrigo julgava que conseguiria influenciar as decisões governamentais.
Mas tão logo alcançou prestígio nacional, Plácido de Castro recusou a tutela do veterano. Foi a partir de então que o último se tornou um desafeto do primeiro. Carvalho foi, inclusive, apontado como cúmplice do assassinato de Plácido de Castro ocorrido em 1908 (Cf. CASTRO, 2005). Abaixo algumas dentre muitas cartas que comprovam o envolvimento do governo do Amazonas na promoção da causa supostamente acriana.

Caquetá, 12 de novembro de 1901. Excelentíssimo Senhor Doutor Silvério José Nery [...] Se V. Ex. ainda pensa como quando daí vim, em junho vindouro limparei o Acre de bolivianos. Necessito que V. Ex., em abril, arranje uma lancha de confiança e me mande alimentação para 150 homens em 30 dias, 60 Mannlincher (rifles) com 15.000 tiros e 120 rifles de cano comprido com 30.000 tiros [...] com muita estima e consideração - Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 171, grifo nosso).

Caquetá, 18 de junho de 1902 - Exm. Sr. Dr. Silverio José Nery, respeitável amigo e senhor [...] basta-me 180 armas, 60 sem fumaça e 120 rifles com as competentes munições [...] Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 171).

Caquetá, 18 de julho de 1902 - Exm. Sr. Dr. Silverio José Nery, respeitável amigo e senhor [...] se pudermos obter 120 rifles e 40.000 tiros faremos o assalto [...] com muita estima e consideração - Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 217).
         
          Acreditamos que ficou claro que o governo do Amazonas já administrava, policiava e tributava parte do território que hoje compreende o atual estado do Acre. As terras que banhavam o rio Acre, conhecidas simplesmente como “Acre”, faziam parte do município Antimarí, que depois ficou conhecido como Floriano Peixoto. Acontece que do ponto de vista dos tratados internacionais, a interpretação hegemônica que se tinha até o final do século XIX era de que aquelas terras eram estrangeiras.
          Isso significava tantos os brasileiros que colonizaram o “Acre” quanto o governo do Amazonas que o administrava agiam de forma ilegal e criminosa. No entanto, a região acriana movimentava muito dinheiro e por não ser fiscalizada por alguém de direito, o oportunismo dos “bandeirantes” brasileiros acabou prevalecendo. A maioria dos jornais da época e o próprio Itamarati dizia que os nordestinos agiram de boa-fé, pois consideravam-na “terras sem dono”.
          No entanto, se a presunção da inocência é, em parte, cabível aos humildes nordestinos, para o governo do Amazonas e agenciadores de mão de obra, ela é mero discurso fiador do imperialismo brasileiro. O governo federal brasileiro fez vistas grossas ao que estava acontecendo, da mesma forma que Portugal havia feito com os bandeirantes que invadiam o território colonial espanhol na América do Sul no século XVII.
  As fronteiras entre o Brasil e a Bolívia já estavam delimitadas pelo Tratado de Ayacucho (1867) e ratificadas pelo Protocolo de 1895. A única coisa que faltava era realizar a demarcação, ou seja, definir os marcos físicos constituintes da linha de fronteira. Em 1895, Brasil e Bolívia indicam o boliviano Juan Manoel Pando e o brasileiro Gregório Thaumaturgo de Azevedo para fazerem parte da comissão demarcadora dos limites fronteiriços estabelecidos no Tratado de Ayacucho:

Deste rio [o Madeira] para oeste, seguirá a fronteira por uma paralela, tirada da sua margem esquerda na latitude sul de 10º 20' a encontrar o rio Javari. Se o Javari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a fronteira desde a mesma latitude por uma reta a buscar a origem principal do dito Javari. (Disponível em: . Acesso em fev. 2013, grifo nosso).

          Então, a primeira missão da comissão era identificar a nascente do rio Javari. Constatada a coincidência entre a latitude da nascente do Rio Madeira com a da cabeceira do rio Javari, a linha divisória “leste-oeste” entre os dois países seria uma reta na paralela de 10º 20'. Neste caso, o território que compreende o atual Estado do Acre ficaria dividido em dois: o Acre setentrional, ao norte da linha, que seria brasileiro; e o Acre meridional, ao sul da linha, que seria boliviano.
Após os estudos, Thaumaturgo de Azevedo constatou que a cabeceira do rio Javari realmente ficava ao norte da paralela 10º 20'. Isso significava dizer que a divisão entre os dois países se daria por uma linha “oblíqua", ou seja, uma geodésica "leste-oeste”. No mapa a seguir a referida linha seria a hipotenusa do triângulo retângulo que representa o território até então incontestavelmente boliviano. 

Uma fronteira baseada na linha paralela "leste-oeste", traçada na latitude 10º 20', já daria grandes prejuízos aos brasileiros. Com a oblíqua, a situação chegava ao extremo, pois tornava bolivianos tanto o Acre meridional, quanto o setentrional. A fim de defender os interesses econômicos dos amazonenses, Thaumaturgo de Azevedo advogou que os cálculos sobre a nascente do rio Javari feitos pelo Barão de Tefé em 1874 deveriam ser alvos de uma revisão.
O Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos Augusto de Carvalho, até que demonstrou simpatia pelas petições de Thaumaturgo de Azevedo. Mas fora substituído no início do mês de setembro de 1896 pelo militar Dionísio Cerqueira. O novo ministro se posicionou a favor da soberania boliviana na região acriana e Thaumaturgo de Azevedo passou a dizer que não realizaria demarcações contra o Brasil (Cf. AZEVEDO, 1901). Dizia que se a "linha oblíqua" do Protocolo "Carvalho-Medina" de 1895 prevalecesse, o Estado do Amazonas perderia até 69% de sua renda obtida com a produção e comercialização da borracha (Cf. TOCANTINS, 2001, Vol. I, p. 213). O resultado foi que Dionísio Cerqueira o exonerou do cargo no início de 1897.
Em 23 de setembro de 1898, um novo Protocolo foi assinado já com os dados geográficos atualizados. Não havendo mais como questionar a titularidade boliviana sobre a região, em fins do mês seguinte, o Itamarati autorizou a instalação de um posto alfandegário andino no rio Acre. Em 15 de novembro de 1898, Olinto de Magalhães substitui Dionísio Cerqueira no Ministério das Relações Exteriores. Pressionado pela opinião pública e pelos políticos de Manaus, o novo ministro assina um novo Protocolo com a Bolívia em 30 de outubro de 1899. Nele se previa uma nova expedição para constatar a nascente do rio Javari. Para frustração dos brasileiros, mais uma vez, o resultado não alterou por demais os cálculos anteriores.
Não havendo mais como questionar o fato de que a nascente do rio Javari se encontrava ao norte da paralela 10º 20', o governo do Amazonas mobilizou políticos, intelectuais e militantes para defenderem a sua causa. Foi então que o Deputado Federal Serzedello Corrêia, o senador Rui Barbosa e o ex-chefe da comissão demarcatória brasileira Thaumaturgo de Azevedo passaram a dizer que o Itamaraty dava interpretação errônea ao Tratado de Ayacucho. Diziam que independente do lugar onde estivesse a nascente do Javari, bastaria traçar um meridiano a partir dela até chegar a paralela 10º 20’. O ponto de encontro dessas duas retas perpendiculares, a chamada “linha quebrada”, serviria de marco final da linha divisória iniciada no rio Madeira.

Essa "nova" interpretação foi adotada pelo novo Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco. Ele toma posse em 03 de dezembro de 1902, e passa a questionar a soberania boliviana ao norte da paralela 10º 20'. Adere à defesa da “linha quebrada” como divisória entre os dois países. Assim o fez para tornar o Acre Setentrional uma área litigiosa e justificar e legitimar a ocupação militar da região. A Bolívia não teve outra alternativa a não ser aceitar o modus vivendi proposto pelo Brasil e posteriormente desistir do Acre. Dizia o diplomata boliviano "ese funesto modus vivendi es el acto más deplorable que registran los anales de nuestra penosa historia diplomática"(ARAMAYO, 1903, p. 39).
Resumindo, somente a “Revolução Acriana” serve para explicar a anexação das terras que hoje compõem o estado do Acre. Quem de fato estava por trás de tudo, orquestrando o abrasileiramento do “Acre”, não eram os acrianos e sim o governo do Amazonas. Basta dizer que a Junta Revolucionária do Acre era composta por vários “testas de ferro” daquele Estado, dentre os quais Rodrigo de Carvalho e Gentil Norberto. Além do mais, até mesmo a “nova” interpretação do Tratado de Ayacucho, calçada nos interesses amazonenses, colaborou para a assinatura do Tratado de Petrópolis, já que, após a ocupação militar do Acre Setentrional pelas tropas do exército brasileiro em 3 de abril de 1903[5], foi um ultimato à Bolívia.
Apesar de todo esforço amazonense, a região anexada ingressou no corpo da pátria na condição de Território administrado diretamente pela União. Isso, além de ser inconstitucional, feria diretamente os interesses do Amazonas. Mas os políticos desse Estado não se conformaram, e decidiram disputar contra a União o direito sobre o Acre por meio de ações políticas e jurídicas.
A primeira tentativa oficial se deu em dezembro de 1905, quando o senador Jonatas Pedrosa apresentou um Projeto de Lei ao Congresso Nacional visando a anexação do Território do Acre ao estado do Amazonas. A segunda tentativa aconteceu, no mesmo mês, quando o Amazonas contratou o renomado jurista Rui Barbosa para atuar como advogado em uma Ação Civil Originária (Nº 9) aberta no Supremo Tribunal Federal contra a União. A defesa foi argumentada em duas grandes obras: A transação do Acre no Tratado de Petrópolis (1906) e O Direito do Amazonas ao Acre Setentrional (1910). Apesar de o parecerista ter dado ganho de causa ao estado do Amazonas, a Ação Civil nunca foi julgada pelo Supremo.
A Constituição de 1934, em suas Disposições Transitórias, mais precisamente em seu artigo 5º, afirmava que a União indenizaria o estado do Amazonas pelos prejuízos que teve pela perda do Acre. Subtende-se, com isso, que de fato o Acre havia assumido o formato de “Território” de maneira ilegal e que toda ou parte de sua extensão geográfica deveria pertencer ao estado do Amazonas, caso contrário, não haveria necessidade de indenização, que, ao que tudo indica, veio a ser paga em 1950.




[1] Dizia-se que queria chegar até a Bolívia para adquirir gado “para baratear a subsistência da população da capital amazonense”. (RIBEIRO, 2009, p. 19).
[2] Vários fatores favoreceram a invasão: a) o território era rico em seringueiras; b) os bolivianos não protegiam as suas fronteiras; c) os brasileiros tinham facilidades creditícias para expandir a produção gomífera para além das fronteiras; etc.
[3] Por conta da legislação da época, a intimação não poderia ser um ato oficial do governo do Amazonas, devido a isso, José Carvalho estrategicamente recolheu a assinatura de 57 seringalistas em um manifesto contra a delegação boliviana.
[4] As cartas trocadas entre Plácido de Castro e Silvério Nery foram poucas se comparadas com a intensa comunicação que Carvalho e Norberto mantinham com o governador. Essa situação reforça a suspeita de que Plácido de Castro tenha sido um “prestador de serviços” da estirpe de Galvez. É bom que se diga que a história de que Plácido de Castro somente aceitaria o comando militar da “revolução” caso o governo do Amazonas não interferisse nela, tem procedência duvidosa, uma vez que não aparece nos apontamentos do próprio Plácido de Castro. Provavelmente foi mais uma manipulação histórica, dentre as muitas inventadas por Lima (1998, p. 89).


[5] O Brasil já havia obtido a neutralidade norte-americana e a desistência do Bolivian Syndicate (Cf. CARNEIRO, 2015b). Nessa conjuntura, a Bolívia não tinha condições de resistir às imposições do Brasil.

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