domingo, 27 de março de 2016

Bezerra, Maria José. Invenções do Acre: um olhar social sobre a história institucional da região acreana. Rio Branco: EAC Editor, 2016, 332 p.

SUMÁRIO



PREFÁCIO (Prof. Dr. Valdir Calixto)
07


INTRODUÇÃO
09


1. A INVENÇÃO DO ACRE ESTRANGEIRO
16


2. A INVENÇÃO DO ACRE BRASILEIRO
68
2.1 Os que mandavam
84
2.2 Autonomia já!
100


3. A INVENÇÃO DO ACRE EMANCIPADO
113
3.1 O Acre quer ser Estado
115
3.2 E mulheres foram à luta: as legionárias do Acre
148


4. OS PARTIDOS POLÍTICOS E A MEMÓRIA DOS MILITANTES ACREANOS

167
4.1 Os partidos políticos brasileiros em foco
168
4.2 A voz do passado: os militantes acreanos
183


5. A INVENÇÃO DO ACRE VIÁVEL
223
5.1 O grito da floresta
250
5.2 A floresta envergonhada e as novas representações da auto­nomia acreana

276


CONCLUSÃO
300


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
311





PREFÁCIO                                                                        

A escrita da história, a historiografia, emerge de uma relação intersubjetiva, no tempo entre quem escreve – neste caso o historiador – e seu objeto: o fato, em toda sua complexidade, pois que é construído pelo homem, interagindo com sua cultura ou culturas outras, com a natureza, com sua ou com outras polis. Compreende-se, pois, que, emergindo desta complexa intersubjetividade, resulte a escrita da história, a produção historiográfica propriamente dita. É este o caso da obra de Maria José Bezerra, Invenções do Acre – um olhar social sobre a história institucional da região acreana.
Com invejável maestria na análise e interpretação das fontes primárias; fundamentada teoricamente na leitura de uma rica bibliografia, onde se destacam obras de autores dotados de diferenciadas, mas combativas, visões humano-sociais de mundo, como Zygmunt Bauman, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault, Ernesto Laclau, Marilena Chauí e Michael Lowy; dominando admiravelmente a técnica das entrevistas, com comentários pertinentes, muitas vezes próximos a uma narrativa poética, a historiadora Maria José tece com segurança seu tear de Clio.
Nada escapa à consciência histórica e arguta de Maria José. Ao longo dos memoráveis cinco capítulos, que conformam sua narrativa, expõe, com argumentação livre de qualquer submissão à ‘razão pura’, desde a intrincada e complexa dança das linhas (dos limites geográficos), que acabariam por desaguar na “revolução acreana”, até os momentos decisivos do igualmente intrincado jogo de interesses de partidos políticos, lastreando a transição do status quo ante, ou seja, a mudança de Aquiri - Território - para Estado federado.
Nada escapa, repetimos, à consciência arguta da historiadora! Memoráveis, também, são as páginas em que Maria José resgata a participação das mulheres no movimento pró-autonomia política do recém inventado Território.
Este belo livro, que ora o leitor tem em mãos, torna-se para sempre leitura obrigatória em todas as estantes públicas ou particulares brasileiras, não somente por sua notória contribuição à historiografia regional acreana, mas, sobretudo, por sua mensagem de esperança de que novos dias sobrevenham, sepultando, de vez, a barbárie civilizada de ontem e de hoje.

 Prof. Dr. Valdir de Oliveira Calixto, professor de história aposentado da Universidade Federal do Acre.



INTRODUÇÃO

Este livro torna público junto a um número mais extenso de leitores, os estudos e pesquisas desenvolvidos durante o doutorado em Ciências, na área de História Social, que realizamos através do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade de São Paulo, no período de 2003 a 2006. Ressaltamos que a problemática da pesquisa Invenções do Acre foi trabalhada sob o prisma do poder político institucionalizado, na perspectiva de demonstrar que o Acre é uma invenção do capital, em uma fase peculiar da expansão capitalista, para além das fronteiras da Europa, na virada do século XIX para o XX.
O fundamento teórico e político que embasa a pesquisa de doutoramento foi elaborado ao iniciarmos os estudos que culminaram com a produção da dissertação de Mestrado A invenção da cidade: a modernização de Rio Branco na gestão do governador Guiomard Santos (1946-50), quando explicitamos que a visão de modernização, instituída por este governante, estava alicerçada em uma concepção de civilidade, apoiada na racionalidade científica e cultural da tradição do pensamento iluminista, sob um viés católico-cristão.
Por sua vez, as invenções do Acre caracterizam os momentos decisivos da trajetória política e administrativa da região. O Acre estrangeiro, o Acre brasileiro, o Acre emancipado e o Acre viável instituem a escrita de uma história que, nos diálogos entre as fontes históricas oficiais e as memórias e oralidades dos atores sociais, presentes em cada momento inventivo, traz para o cenário da historiografia contemporânea do Acre e/ou sobre o Acre, de teor mais crítico que descritivo, o social, através das vozes, experiências, aventuras, desilusões, sonhos e projetos daqueles que, no contraponto das relações institucionais de poder, arcam com os ônus, em cada fase inventiva.
Este procedimento metodológico implicou na revisão bibliográfica que embasa os enquadramentos dos contextos inventivos. A historicidade reconstituída é fundamental à compreensão da intervenção do capital na região, ocorrida de forma articulada com os interesses de grupos políticos nacionais, aliados ou não, às forças políticas regionais.
Destacamos também que, no âmbito deste trabalho, o conceito de invenção tem o significado de construção teoricamente construída, aliás, instrumentalmente construída pelo poder político institucional. Portanto, se trata de uma história política que enfatiza as experiências dos sujeitos sociais subalternos. Uma história que traz o “outro” para a cena histórica, juntamente com suas representações. E, neste aspecto, nos colocamos na condição de parte integrante da história contada, devido ao nosso lugar social de origem e às trajetórias do ser mulher, negra e migrante nordestina, radicada no Estado do Acre há mais de trinta anos. Enxergamo-nos entre os “outros”, no tempo deles, e todos nós em uma viagem no tempo, em uma história que é diacrônica e sincrônica.
É relevante considerar que vários caminhos nos levaram ao tema. Assim, o fato de, durante seis anos, termos exercido a função de coordenadora do Centro de Documentação e Informação Histórica (CDIH), da Universidade Federal do Acre, nos possibilitou a oportunidade de organizar o acervo documental referente ao processo de elevação do Acre a Estado, tendo publicado, inclusive, um dossiê sobre o tema, constituído da coletânea de documentos de natureza diferenciada, datados de 1953 a 1962. Também desenvolvemos projetos de pesquisa, através do Pibic/CNPq, que contaram com a participação do Prof. Dr. Valdir de Oliveira Calixto e de alunos dos cursos de história da Ufac. Ademais, tivemos facilidade de acesso às fontes, pois, além de a Srª Lydia Hammes Guiomard Santos ter doado o acervo da biblioteca do ex-governador Guiomard Santos à Universidade, em 1987, de forma similar, estabelecemos uma relação de amizade pessoal com a mesma, entrevistando-a todas as vezes em que se encontrava na cidade de Rio Branco.
Outro aspecto a considerar é que, à época em que realizamos as pesquisas, inexistiam trabalhos acadêmicos específicos sobre a elevação do Acre à categoria de Estado. Este tema era tratado como apêndice em algumas dissertações, teses ou livros sobre a história do Acre, tendo em vista que a maioria dos historiadores, sociólogos e economistas priorizava temas situados a partir de 1970; ou, em outros casos, localizados no período compreendido entre as últimas décadas do século XIX e o final dos anos 40, do século XX.
Os aportes teóricos do texto ora construído se embasam nas reflexões que Antônio Gramsci fez sobre a “elite” e os “intelectuais orgânicos”. Essas categorias teóricas foram fundamentais no entendimento das relações de poder entre Guiomard Santos e os representantes dos “patrões” (seringalistas e comerciantes), sobre a instrumentalização e estratégias para a corporificação e aprovação do projeto de Estado, gestado pelos mesmos.
As reflexões de Michel Foucault, tanto sobre discurso, quanto aquelas relacionadas à microfísica do poder, bem como o caráter coercitivo do Estado, foram ferramentas úteis, especialmente no que tange ao conceito de representação, fragmentação do poder político e à instrumentalização das forças políticas locais.
A questão sobre o “poder” foi igualmente importante, uma vez que Foucault defende que o poder não está concentrado exclusivamente no Estado, sendo um mero aparelho de Estado da classe dominante. Tal entendimento nos possibilitou demonstrar que a luta pela elevação do Acre à condição de Estado, apesar das estratégias e alianças engendradas pelos representantes da classe produtora, não se sagrou vitoriosa no pleito eleitoral que escolheria o primeiro governador do Acre constitucional, pois quem se elegeu foi José Augusto de Araújo, um candidato que concorria com Guiomard Santos. Tudo isso nos leva a crer que aqueles que “fizeram” o Estado não receberam apoio popular para governá-lo.
No entanto, a luta pela autonomia política de Acre não ocorreu sem que houvesse resistências dentro da própria rede do poder, por conta da multiplicidade das relações de forças que a compunha, indicando a presença de uma relativa autonomia da periferia em relação ao centro.
Vale ainda considerar o universo ideológico e as práticas políticas de Guiomard Santos e Oscar Passos. Ambos pertenciam à oficialidade do Exército brasileiro e eram as principais lideranças políticas do Acre, que, pessoalmente ou via aliados, se alternavam no poder. Ressaltamos ademais que as contribuições de Caio Navarro de Toledo, especialmente sobre o Iseb e seu papel na formulação da ideologia nacional desenvolvimentista, nos foram relevantes para entender as conjunturas dos anos 40 e 50 no Brasil e o modo como estas se rebatiam nas práticas de Guiomard Santos e Oscar Passos.
Além disso, no contexto da trama histórica que envolve o tema em discussão, foi necessário ressaltar que o movimento autonomista se desenvolveu em um universo marcado pela luta do poder local, que, por sua vez, pretendia se afirmar ante o poder central. Nesse aspecto, as contribuições de Suely Robles, acerca dos “radicais da República”, e de Maria Isaura Pereira de Queiroz, sobre o “mandonismo local na vida política brasileira”, nos ajudaram a compreender as peculiaridades dos “coronéis” da região, conhecidos como “coronéis de barranco”. Sobre esse assunto também se mostraram essenciais algumas obras clássicas de literatura e de historiografia regionais.
Para o estudo do acreanismo, subjacente à questão autonomista, as ponderações de Eric Hobsbawn, sobre tradição e ainda as que se referem aos séculos XIX e XX, contribuíram, sobremaneira, para contextualizar o objeto de estudo, a partir do “olhar” institucional. Destarte, as invenções do Acre são apresentadas destacando rupturas e continuidades. No entanto, a visão do poder institucional, embora manifeste dissidências no seio das forças políticas hegemônicas em cada etapa inventiva, tem sido dominante.
Outros pontos que pusemos em destaque foi a memória política dos integrantes dos partidos políticos da época – PSD, PTB, UDN –, bem como a de alguns que se consideravam ou eram vistos como militantes ou simpatizantes do PCB, e ainda a memória social das mulheres legionárias da causa autonomista. Neste aspecto, os trabalhos de Ecléa Bosi, Maurice Halbwachs e Jacques Le Goff foram imprescindíveis no tocante às relações entre memória, história e identidade.
Todavia, paralelamente às invenções do Acre, sentimos a necessidade de acentuar outro olhar – o social –, que nos remete ao sonho, ao desejo, à utopia e às aspirações não realizadas, mormente no que se atém à construção do Acre que se almeja. Especialmente, atentamos para as expectativas dos segmentos sociais subalternos, que, em cada etapa inventiva, adentram o território da história, às vezes, de forma organizada e aguerrida, ainda que, mesmo assim, não tenham conseguido se tornar os protagonistas e nem conseguido “fazer acontecer” o sonho para adiante, no caso, para o presente. Entretanto, o princípio da espera dos sonhos diurnos está em processo. É o devir histórico...
A esse respeito, as obras de Michel Löwy, William Morres, E. P. Thompson e Raymond Willian nos ajudam a apreender o sonho de outro Acre, um que promova melhor qualidade de vida, economia dinâmica e diversificada, porém, respeitando a ambiência natural. A utopia a ser concretizada é a da construção de um modelo de desenvolvimento que conduza à cidadania plena, ao respeito às múltiplas identidades étnico-raciais e de gênero existentes no chão acreano. O que se espera de um Acre viável não pode sucumbir ante os desafios com que nos defrontamos, sob pena de comprometer um futuro melhor para todos os que vivem neste pedaço da Amazônia. Urge repensar a razão, a ciência, a cultura, a tecnologia e o desenvolvimento a partir de novas referências e de novos paradigmas.
No enredo construído, contrapomos o discurso governamental, jornalístico, literário, autonomista, àquele pertencente aos extrativistas, enquanto força de resistência, em uma determinada conjuntura: a dos militantes dos partidos políticos, de prefeitos e governadores, de mulheres legionárias e de tantos outros sujeitos políticos, que passaram a ter maior visibilidade através da produção acadêmica dos intelectuais da Ufac, notadamente de historiadores, sociólogos, economistas, antropólogos, cientistas políticos, literatos. Estes expuseram em seus trabalhos a heterogeneidade dos atores sociais, com suas vozes, contradições, projetos, perdas e vitórias.
Na escrita do presente estudo, assinalamos que o propósito da pesquisa realizada consistiu em re-ler algumas obras fundamentais, referentes à historicidade das invenções do Acre, especialmente as de Pedro Martinello, Pedro Vicente da Costa Sobrinho, Valdir de Oliveira Calixto e Elder Andrade de Paula, em um exercício de contrapor às mesmas novas fontes de pesquisas oficiais e relatos orais desconhecidos. Toda essa leitura colaborou com as argumentações construídas sobre as sucessivas invenções do Acre, inclusive a atual – a do Acre viável.
No primeiro capítulo, A invenção do Acre estrangeiro, a perspectiva foi demonstrar que, institucionalmente, o Acre não existia, pois as terras que atualmente integram o território do Acre pertenciam à Bolívia, conforme o que foi estabelecido pelo Tratado de Ayacucho (1867). No entanto, esse espaço estava sendo ocupado por brasileiros, que se dedicavam ao extrativismo da borracha, contando ainda com a presença dos caucheiros peruanos, no Juruá. Portanto, o litígio com a Bolívia referia-se às terras dos Altos Rios do Aquiri. Com relação aos embates militares que se realizaram, os mesmos envolveram o Alto Acre e o Purus. Porém, a solução definitiva para a “questão do Acre” se deu com a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903). A partir da anexação das referidas terras ao Brasil, criou-se o Território Federal do Acre. Quanto à disputa pelas terras do Juruá, se demandou um novo Tratado, desta vez, com o Peru – o Tratado do Rio de Janeiro (1909).
No segundo capítulo, A invenção do Acre brasileiro, buscamos reconstituir as bases do poder local frente aos limites impostos pelo governo da União, bem como demonstrar que o Movimento Autonomista possibilitou a invenção de outro Acre – independente politicamente.
O terceiro capítulo, A invenção do Acre emancipado, está centrado no processo de elevação do Acre a Estado e no imaginário político das forças que inventaram esse Estado, destacando nesse processo a tramitação do projeto de Guiomard Santos no Congresso Nacional e a participação das mulheres na emancipação do Acre.
No quarto capítulo, realizamos um enquadramento histórico dos partidos políticos existentes no Brasil, no limite temporal das primeiras décadas do século XX até os anos 60, dando maior ênfase ao PSD e PTB, bem como às representações desses partidos, conservadas nas memórias dos velhos militantes políticos do Acre.  Consultamos a literatura existente sobre os partidos políticos no Brasil e as falas de lideranças desses partidos acerca tanto da questão da elevação do Acre a Estado, quanto da conjuntura política regional da época.
No quinto capítulo, A invenção do Acre viável, a finalidade é discutir as novas representações da autonomia acreana, tendo como elemento central o cultural, além de caracterizar o processo de invenção do Acre viável como algo em aberto, dinâmico e em permanente mutação, na medida em que acontece em uma fase peculiar da economia capitalista mundial.
Para finalizar, é importante destacarmos o pioneirismo da tese de doutorado a partir da qual esse livro foi escrito. Esse estudo buscava desconstruir o discurso político relativo à questão do Acre como revolução, discurso esse legitimado pela historiografia tradicional. É importante acrescentar que, à época, a tese trouxe aspectos da história do Acre ainda não contemplados pela produção acadêmica, tais como: o movimento autonomista, a participação das mulheres na causa emancipacionista acreana, o resgate das memórias dos militantes políticos do PSD, PTB, UDN e PCB, durante os anos de 1960 a 1970, bem como a discussão sobre a viabilidade do Acre.
Termino essas linhas agradecendo a todos que colaboraram direta e indiretamente na redação da minha tese e em sua adaptação para livro.
                                                                                                       Prof.ª Dr.ª Maria José Bezerra
Rio Branco – AC, dezembro de 2015.


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