“As
escolhas lexicais e seu uso revelam a presença de ideologias que se opõem,
revelando igualmente a presença de diferentes discursos, que, por sua vez,
expressam a posição de grupos de sujeitos acerca de um mesmo tema” (FERNANDES,
2005, p. 21.)
A grafia ou a imagem acústica “Acre” pode expressar diversos
significados, dando forma a vários signos linguísticos. De acordo com o
dicionário Houaiss, temos: 1) sabor amargo, ácido, azedo; 2) cheiro ativo,
forte, penetrante; 3) som agudo, pungente; 4) que provoca amargura; aflitivo,
doloroso, tormentoso; 5) desagradável; áspero, mordaz, ríspido; 6) unidade de
medida para superfícies agrárias.
Quando a grafia “Acre” está relacionada a uma região ou a um território
amazônico “colonizado” por brasileiros no último quartel do século XIX, passa a
assumir diversos outros sentidos. Cada sentido se refere a um signo
linguístico, que deve ser compreendido como
um acontecimento linguístico singular, pois cada um deles tem uma formação
discursiva própria. Do ponto de vista semântico-discursivo e da descontinuidade
histórica, um Acre não pode ser concebido como a evolução do outro, como se
ambos fizessem parte da mesma história. Uma vez que a imagem que cada uma delas
evoca na mente do interlocutor apresenta singularidades, além do que o contexto
de emergência e de utilização de cada um deles são diferentes e os atores
sociais que os mobilizaram também.
Segundo
esse entendimento, o Acre, enquanto região banhada pelo rio Acre, é diferente
do Acre proclamado como República por Luiz Galvez, pois, além desse rio, esse
território abrangia o Purus e Iaco. O Acre, enquanto território estrangeiro, é
diferente daquele visto como terra nacional. O processo de significação de cada
um deles é diferente. Portanto, não há como montar uma genealogia entre o Acre
Território e o Acre Estado, a não ser arbitrariamente, pois ambos representam
entes políticos e jurídicos diferentes e, por isso, devem ser tratados como fenômenos
singulares.
Mapa 01 – Acre imaginado por Plácido de Castro em 1907.
Fonte: Hemeroteca digital da Biblioteca
Nacional.
O
Acre contemporâneo e o Estado Independente do Acre, proclamado por Plácido de
Castro, em 1903, não podem ser tratados como um mesmo signo linguístico, pois o
primeiro é uma unidade federativa da República do Brasil e o segundo, um país
autônomo. Quando uma liderança aborígine defende que as terras do Acre,
ocupadas tradicionalmente por uma dada tribo indígena, sejam demarcadas, certamente
esse Acre do discurso não é o mesmo daquele cuja autonomia era defendida por
Guiomard Santos em fins dos anos 1950.
O Acre amazonense que aparece
nos discursos de Rui Barbosa não pode ser considerado o mesmo Acre
“ecologizado” que circulou nos discursos das lideranças da Frente Popular nas
eleições estaduais de 2002. No campo semântico, esses fenômenos linguísticos
devem ser tratados como diferentes. Dessa forma, quando se busca traçar um
lastro de historicidade entre o Acre atual e o Acre colonizado por João Gabriel
de Carvalho, em meados de 1877 e 1878, o Acre Estado não pode ser identificado
como um “Acre em potencial” já existente naqueles primeiros núcleos de
colonização que aconteceram às margens do rio Acre em fins dos anos 1970. Caso
contrário, a história vira uma mera sequência cronológica de fatos teleologicamente
marcados.
Mapa 02 – Acre
Setentrional e Acre Meridional.
Fonte: Revista Nossa História, Ano 3, Nº 25,
Novembro de 2005, p. 21. [Adaptado pelo autor]
O Acre que aparece no discurso
do historiador boliviano José Aguirre Achá (1902) não pode ser o mesmo daquele
dos discursos do senador Jonathan Pedroza (1848-1922), autor do Projeto de Lei
que visava a incorporação do Acre Setentrional ao Estado do Amazonas. Que
relação teria a ideia de Acre vinculada ao Departamento
do Alto Acre criado em 1904 com o Acre Meridional ou Acre Setentrional[1]
inventados em 1903 com a chegada das tropas brasileiras lideradas pelo general
Olímpio da Silveira em Puerto Alonso?
Mapa
03 - Território abrangido pelo Departamento do Acre
Fonte:
ACRE, 2001, p. 19. [adaptado pelo autor]
O Estado Independente do Acre
proclamado por Plácido de Castro, em janeiro de 1903, não foi o mesmo
proclamado por Luiz Galvez em 1899, a representação geográfica de ambos eram
diversas. O Acre Meridional, administrado por Plácido de Castro em abril de
1903, não pode ser o mesmo do Departamento do Alto Acre criado em 1903. Em
resumo, o “Acre” pode representar a imagem acústica e gráfica de diferentes
signos, uma vez que pode significar diferentes coisas. No caso específico de
topônimos, a dissemelhança pode acontecer nas dimensões territoriais, no status jurídico e/ou na condição
político-administrativa.
2.1.1
O “Acre” estrangeiro
“A análise destina-se a evidenciar os
sentidos do discurso tendo em vista suas condições sócio-históricas e
ideológicas de produção. As condições de produção compreendem fundamentalmente
os sujeitos e a situação social” (FERNANDES, 2005, p. 23.)
Antes da chegada do homem
branco civilizado de nacionalidade brasileira, o território que hoje pertence
ao estado do Acre já havia sido nomeado com os mais diversos topônimos. As
Repúblicas do Peru e da Bolívia já o tinham como parte de seus respectivos
territórios. Sem dizer das diversas nações aborígines que mantinham relações
identitárias com a região há centenas de anos.
Talvez o estado do Amazonas
tenha sido o primeiro a inventar aquele território como brasileiro, mas não
como Acre, e sim como parte do município de Floriano Peixoto. Castelo Branco
(1958, p. 22) afirma que o pernambucano Serafim da Silva Salgado, pioneiro na
exploração do rio Purus, apesar de não ter navegado pelo rio “Acre”, nomeou-o
“Canaquiri”.
Todas essas representações de
pertencimento foram sacrificadas em favor da emergência do topônimo “Acre”, que
já surge enodoado de “violência simbólica”.
Neste tópico, veremos como os
“não-brasileiros”, mais especificamente as pessoas das Repúblicas do Peru e da
Bolívia, consideravam esse território. Infelizmente, pelo fato de as nações
aborígines serem de cultura oral, não desfrutamos de fontes históricas
suficientes para analisarmos o processo de nomeação e apoderamento simbólico
deles sobre a região em questão. Mas tanto do ponto de vista indígena, quanto
do peruano e boliviano, os brasileiros se comportaram como invasores,
apoderando-se de território estrangeiro.
O topônimo “Acre” não existia
no vocabulário dos falantes de língua espanhola, muito menos nos de línguas
indígenas. Ele foi uma invenção brasileira, no entanto, por pura ironia, como
para provocar a “teleologia” da história oficial acriana, resolvemos “brincar”
com as palavras e utilizar termos como “Acre peruano”, “Acre boliviano”, “Acre
espanhol”, dentre outros.
Por meio deles, queremos dizer
que o território que hoje pertence ao estado do Acre foi apoderado
simbolicamente com outros nomes por espanhóis, peruanos, bolivianos, nativos,
etc. Portanto, a imagem cartográfica que o nome Acre evoca como brasileiro, não
passa de uma operação arbitrária. O signo “Acre” é apenas o capítulo mais
recente da história do processo de nomeação e identificação desse território (e
um dos mais breves, por sinal).
Trecho do livro:
[1] O general Olímpio da Silveira assumiu o
governo do Acre Setentrional no dia 3 de abril de 1903, e Plácido de Castro, o
governo do Acre Meridional. Um mês e dez dias depois, o general invadiu também
o Acre Meridional.
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