INTRODUÇÃO
Essa obra é parte do relatório de
pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) entre agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019,
porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido
coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação teve a ver com dúvidas
que nutria desde o ensino médio, a saber: teria sido a anexação das terras
banhadas pelo rio Acre uma dádiva dos heróis acreanos?
Os livros
que lia sobre o assunto me diziam que sim, a publicidade governamental
divulgada nas datas comemorativas e os discursos que anualmente ouvia nas
paradas cívicas também. Porém, suspeitava de que havia algo de “podre no reino
da Dinamarca”, como diria Hamlet, no livro de Shakespeare.
Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a
história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas
extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na
historiografia acreana e sim a ausência de algumas personalidades que eu,
inocentemente, também considerava dignos de mesma honra.
Obviamente
que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes
acontecimentos”. Sei que os “homens” e os “acontecimentos” não são “grandes” nem
“pequenos” em si mesmos. A valoração ou depreciação deles depende da forma como
foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que sempre tem suas narrativas
documentais preservadas.
Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram
interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não
existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por
interesses econômicos, como foi o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar
os fatos e avaliar quais deles realmente foram decisivos para a nacionalização
da região do Acre ao Brasil. E foi isso que fiz em meus livros anteriores e é o
que continuo fazendo neste.
O livro
foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de
“revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política
na Questão do Acre. No segundo capítulo, mostro a atuação do Estado do Amazonas
no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre, pré-requisito
fundamental da anexação.
No
terceiro, explico que os embates militares contra os bolivianos em fins do
século XIX se deu em território administrado, embora ilegalmente, pelo Estado
do Amazonas. E que o termo “Acre”, na época, significava tão somente um rio que
fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense de Floriano Peixoto.
Portanto, a suposta “revolução” foi adjetivada como acreana por ter os seus
principais eventos ocorridos às margens do rio Acre que, naquela ocasião, fazia
parte da jurisdição do Estado do Amazonas.
Esse
livro faz parte de um projeto revisionista que propõe reescrever a história do
Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consiste em atitudes relativamente simples,
por exemplo, no caso do processo de nacionalização das terras que vieram a se
chamar Acre, em descentralizar a figura de Plácido de Castro da narrativa. Dando
ao mesmo uma posição mais realista, portanto, secundária.
Afinal, ele
não era o mentor intelectual da dita “revolução”, apenas foi inserido pelos
amazonenses em um projeto de resistência à soberania boliviana já em andamento.
A vitória em Puerto Alonso em janeiro de 1903, não anexou um palmo de terras
sequer ao Brasil, no máximo, tornou-o independente. Sem dizer que não foi
definitiva, já que mais soldados bolivianos se dirigiam ao local para a
desforra e a região já estava “arrendada” para o Bolivian Syndicate, consórcio internacional diante do qual Plácido de Castro
não significava nada.
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Isso
acontece porque o sentido de um vocábulo não lhe é imanente e sim convencional.
A depender da situação comunicacional e dos interactantes, o sentido das palavras
podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o
sentido modifica, então, a palavra já não é mais a mesma, ela se fez outra,
embora com a mesma grafia.
Foi, por
isso que fiz, às fontes documentais produzidas em fins do século XIX, a
seguinte pergunta: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução”
naquele contexto histórico amazônico? Teria a palavra “revolução” sido empregada
na época da chamada Questão do Acre com a mesma força conceitual daquela
aplicada na França em 1789? Por que optaram pelo termo revolução e não subversão,
rebelião ou revolta?
Eu
defendo que o conflito armado entre brasileiros e bolivianos foi mal “etiquetado”.
O fato de o evento às margens do rio Acre ter sido qualificado como revolução não
é suficiente para transformá-lo em uma revolução.
As
etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para
atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se
diz “História Moderna”, cria a falsa ideia de que todos os fatos ocorridos na
Europa, durante os séculos XV e XVIII, tenham sido “avançados”. Acontece que
não dá para aceitar como obra do progresso, fenômenos como o colonialismo, o poder
absolutista, o tráfico de seres humanos, as guerras religiosas, etc.
Sendo assim,
a opção pelo adjetivo “moderno”, só se torna compreensível, se considerada a
inserção dele em um projeto etnocêntrico da História. É o mesmo caso das
chamadas “Grandes Navegações”, etiqueta criada para nos induzir a acreditar que
as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV foram as
primeiras do mundo. A verdade é que os chineses já dominavam os mares antes dos
europeus e isso com tecnologias bem mais avançadas.
E os fatos
políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Até
que ponto não é mero “preciosismo” chamá-lo “Revolução”? Acaso a utilização da
etiqueta “Revolução de 1930” não foi uma decisão política de dissimular o Golpe
de Estado? Ou uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento?
Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história
política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de
direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia?
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Se
alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que, pelo Código Penal em vigor, demonstrou
ser um criminoso, por que eu tenho que render-lhe tributos? Não seria mais
sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu?
Acaso a
fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que
querem que eu o veja como herói e não como um assassino? Acaso o assassino que
mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela
ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não fora um mero fetiche usado
para encobrir os verdadeiros interesses em jogo?
A
história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como
dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela,
até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento
deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe
uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.
Há, porém,
fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que
se torna muito difícil mudar-lhe os enfeites. Isso porque eles agradam a
“gregos e troianos”, pois é útil politicamente, independentemente da classe
dominante vigente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Não é
em vão que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece até hoje “intocável”,
mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.
Como historiador,
já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história
do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já
dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado
não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano,
com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico,
patriótica, cordial e ecológico. Entretanto, quando a verossimilhança é ensinada
como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do
passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.
Os
fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a
suposta grandeza do povo acreano, porém, o resultado já não é mais a História,
e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada”
ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático,
festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são
lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.
Sob o efeito
do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que
nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada,
o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história,
passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a
narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar
para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou
armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico.
Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular
os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.
Se, ao terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente, já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos devido ao consumo abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado oferece gratuitamente sem qualquer debate. Afinal, o consentimento da sociedade em torno de uma memória não é capaz de transformar essa memória em história, muito menos em verdade. A memória, assim como as tradições em torno dela, pode ter sido inventada. A aceitação coletiva pode gerar um consenso em torno de um passado que nunca tenha existido de fato.
Boa leitura!
Rio
Branco, 18 de dezembro de 2020.