
segunda-feira, 24 de setembro de 2007
Sobre O ATLAS ETNOLINGÜÍSTICO DO ACRE - ALAC (Por Luísa Galvão Lessa)

ACRE: telúrico e emblemático
JORNALEGO
ANO III - Nº 82, em 10 de Setembro de 2004.
Notas de uma palestra
ACRE: TELÚRICO E EMBLEMÁTICO
Introdução
Este texto é o registro de uma palestra proferida para um Clube de Leitura feminino, de Vitória (ES), cujo objetivo foi contextualizar o livro “Galvez, Imperador do Acre”, de Márcio Souza, na história daquele Estado. Aqui, não existe a pretensão de fazer história. Simplesmente a de contar, em linhas bem gerais, uma história que aprendi por lá e na leitura de alguns poucos livros. Trata-se de uma colagem que, podendo conter alguns equívocos, tenta passar os contornos da saga acreana.
O Tratado de Tordesilhas
Após o descobrimento da América e do Brasil, a Espanha e Portugal ajustaram as suas desavenças territoriais no Novo Mundo, com a unção papal, com a linha Norte-Sul do Tratado de Tordesilhas. Por este tratado, como se sabe, o Brasil era constituído de menos da metade das terras que hoje possui. A região do Acre estava completamente fora das terras então dominadas pelos portugueses.
Foi graças às incursões dos bandeirantes à procura de metais e pedras preciosas e à captura de índios que os brasileiros empurraram a fronteira estabelecida para oeste. Os bandeirantes do sudeste são decantados em prosa e verso pela suas proezas.
Fenômeno idêntico também se passou ao norte do país. Também foi a migração interna brasileira que ao povoar as terras não descobertas do extremo oeste marcou a presença do Brasil naquelas regiões. Este deslocamento de brasileiros não despertou a mesma consideração dada aos bandeirantes pela nação brasileira.
A Amazônia não despertava grande interesse por parte da Espanha. Os primitivos habitantes do Acre foram os índios (amoaca, arara, canamari e ipuriná).
Território Boliviano
O estabelecimento dos limites entre as terras de Portugal e Espanha, com a expansão da fronteira para além da linha vertical do Tratado de Tordesilhas, passou a ser estabelecido pelos Tratados de Madrid (1750) e de Santo Ildefonso (1777).
Até 1850, a região do Acre era considerada pela Espanha como “Tierras no Discubiertas”. A partir de 1860 expedições exploratórias descobriram o potencial da borracha, viabilizada por força da Revolução Industrial, em curso na Europa.
Em 1867, o Tratado de Ayacucho passou a estabelecer os limites entre o Brasil e a Bolívia, com desconhecimento da geografia local. Foi um tratado feito às cegas. As terras entre os rios Madeira e o Javari pertenceriam à Bolívia. Portanto, o Acre era território boliviano.
Povoamento
O nome Acre foi originário da palavra indígena AQUIRI. Existem algumas versões sobre o seu significado. Uma delas considera “rio de jacarés”. Acre seria uma corruptela de Aquiri, atribuída a um imigrante nordestino de sucesso no aviamento das encomendas dos seringueiros. Seu nome: Manoel Urbano da Encarnação (!).
A grande seca nordestina de 1877/8 é que provocou a grande migração nordestina, especialmente do Ceará, para o Acre.
Como se sabe os rios cruzam o território acreano de oeste para leste formando a bacia hidrográfica amazônica. Assim, viajar longas distâncias rio-acima nessa planície era uma tarefa hercúlea a ser realizada com barcos leves, movidos a remo. A navegação a vela é marítima (oceânica ou costeira) e não se adapta à hinterlândia fluvial de poucos ventos. Com os barcos a vapor é que foi possível a maior inserção do povo brasileiro por aquelas regiões. O Visconde de Mauá chegou a criar uma empresa de navegação fluvial com motores a vapor que parece existir até hoje. Essa empresa chegou a ser associada à Petrobras. No século passado, o Estado do Amazonas estendia sua jurisdição às terras ocupadas por brasileiros no território acreano.
A Questão do Acre
Em 1895, uma Comissão Demarcatória chefiada pelo Cel. Thaumaturgo de Azevedo mostrou quanto o Tratado de Ayacucho era desinteressante para o Brasil. Rechaçado pelo Governo Brasileiro criou-se a polêmica na imprensa. O Governo Brasileiro nomeia então o capitão-tenente Cunha Gomes que, no entanto, reconheceu os limites estabelecidos pelo Tratado. O traçado demarcatório que separa, ainda hoje, o Acre do Amazonas é conhecido como a linha Cunha Gomes.
Já estávamos vivendo sob a égide da República.
A Bolívia, para marcar sua presença, criou uma Delegação Nacional em Xapuri, cidade perto da fronteira, combatida pelos brasileiros.
Cem dias de Paravicini (início: 02.01.1899)
A Bolívia, por sua vez, reage à ação dos brasileiros e manda para a região um ministro plenipotenciário, Dom José Paravicini, que criou a cidade de Puerto Alonso. Paravicini decretou a abertura dos rios amazônicos à navegação internacional e começou a arrecadar impostos que antes iam para o Estado do Amazonas.
Insurreição Acreana (a partir de 01.05.1899)
Sessenta seringalistas da região se rebelaram contra as decisões do governo constituído pelos bolivianos e expulsaram seus representantes, pondo fim assim à gestão Paravicini.
A República Independente do Acre (PRIMEIRA REVOLUÇÃO)
A partir daqui, dá-se início à fase efetivamente revolucionária do Acre, após os esporádicos embates entre os interesses bolivianos e brasileiros. Para efeito deste texto, divide-se a história recente – final do século XIX e no século XX – em quatro grandes revoluções, como se observará a seguir.
Destaca-se, nesta quadra da história, o grande personagem do livro já mencionado, o espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Aria.
Galvez estudou direito e serviu nas embaixadas da Espanha em Roma e Buenos Aires. Tinha vasta cultura, talento militar e administrativo. Tinha fama de mulherengo, envolvendo-se em grandes confusões por este motivo. Esteve em Buenos Aires e no Rio de Janeiro antes de sua ida para a Amazônia.
O Galvez do livro de Márcio Souza é um personagem de romance. O autor o associa a D. Quixote, teatralizando sua atuação. O personagem tem tratamento debochado, passando por figura burlesca e picaresca. Alguns traços de sua personalidade e pelo fato de se fazer acompanhar, em sua incursão para oeste, por uma trupe teatral, possivelmente concorreram para esta caracterização.
Galvez foi repórter jornalístico em Manaus e Belém. Paradoxalmente foi também funcionário do consulado da Bolívia nesta última cidade.
Por exercer essas funções, em Junho de 1899 ele descobre e denuncia a trama: A Bolívia receberia o auxílio dos Estados Unidos para incorporar o território do Acre ao dela. Em caso de guerra os EUA apoiariam militarmente a Bolívia.
A canhoneira americana Wilmington chegou mesmo a ser enviada para região, em missão de boa-vizinhança, sendo muito bem recebida pelas autoridades e populações locais. Na realidade fez o seu périplo rio-acima para mostrar força e as segundas intenções da Grande Nação do Norte.
A denúncia de Galvez aborta a transação. Os jornais do Rio de Janeiro alardeiam a notícia que chocou a opinião pública brasileira. A Bolívia e os EUA negam as denúncias.
Galvez, em associação com o Governo da Província do Amazonas, que financia a expedição com cinqüenta mil libras esterlinas, organiza uma expedição para tomar conta das terras em disputa. O fato de ser espanhol e aparentemente desvinculado do Governo do Amazonas foi fundamental, pois o governo federal não aprovava a empreitada. Assim o governo da província, envolvido totalmente no projeto, não se indispôs com o Governo Federal.
Campos Sales era o então Presidente do Brasil (1898/1902).
A expedição ao Acre, chefiada por Galvez, era composta de 20 homens, 202 volumes (com 20 rifles), embarcados no vapor Cidade do Pará (uma gaiola).
O Acre era então explorado pela Bolívia e abandonado pelas autoridades brasileiras, o que permitiu a Galvez concluir: “Os habitantes do Acre não pertencem à livre e grande pátria Brasileira”.
Foi assim que proclamou a República Independente do Acre (nos território dos rios Acre, Purus e Iaco) em 14.07.1899. Galvez passou a ocupar o cargo de Presidente e não de Imperador, como o romance relata. Sua capital passou a se chamar Cidade do Acre (novo nome de Puerto Alonzo).
A assim chamada República do Acre teve mais sucesso no papel do que na realidade. Planejava-se com detalhes sobre saúde, educação, forças armadas e até tinha planos para instalação de telefones. Foi escrita uma Constituição e foram convocadas eleições. Enviaram-se cartas diplomáticas às nações amigas, inclusive à República do Brasil, solicitando reconhecimento do novo país. Tanto o Brasil como os EUA negaram tal reconhecimento. O autor deste texto não tem conhecimento se alguma nação o tenha feito.
O novo país começou sofrendo hostilidades de todas as partes: da Bolívia, de Manaus e Belém e do Rio de Janeiro. Como já disse, o Governador do Amazonas (Ramalho Jr.) na realidade estava em conluio com o Galvez: visavam criar uma situação de fato para anexar o território ao Brasil e ao Estado do Amazonas. A partir das leituras realizadas admite-se que o real interesse de Galvez era esse. A criação de uma República Independente foi um expediente estratégico para se chegar ao fim colimado. A história mostra o sucesso dessa trajetória. O que se pode discutir é se, de fato, isso estava nos planos do Galvez.
A estratégia de reação da Bolívia para manter o território era invadir Mato Grosso ou contar com a intervenção dos EUA.
Galvez interrompe o fluxo de mercadorias e da borracha. Em vista da situação difícil criada por esse embargo, em 28.12.99 o seringalista Antônio Souza Braga destitui Galvez.
Souza Braga, contudo, visava outro fim, claro no seu pronunciamento: “Se o Brasil mandar um só homem fardado eu entregarei tudo isto. Aos bolivianos, porém, não”. Souza Braga renuncia diante das dificuldades e da inapetência do governo brasileiro. Galvez reassume em 30.01.1900.
O Governo Federal manda força-tarefa da marinha brasileira para destituir Galvez e devolver o Acre ao domínio boliviano (15.03.1900). Não contou com resistência por parte dos revolucionários. Foi o fim da República Independente.
Galvez não era nem D. Quixote tampouco Antônio Conselheiro. Sabia o que queria. O que, aliás, todos os brasileiros queriam. Somente o governo federal, dirigido pelo Sr. Campos Salles, era contrário a esses interesses.
Anotações do livro GALVEZ, O IMPERADOR DO ACRE
O livro começa em 1897, portanto nos primeiros anos da República, proclamada em 1889. Galvez morreu em 1946, com 87 anos.
O narrador compra as memórias de Galvez num sebo de Paris, em 1973. O historiador Leandro Tocantins diz que as encontrou no Instituto Arqueológico de Pernambuco.
“A bacia amazônica é a maior bacia hidrográfica do mundo e a única que não legou nenhuma civilização importante para a história do homem”.
“Poucos brasileiros sabiam onde ficava o Acre em 1899”. Tampouco hoje, acrescenta o autor destas linhas.
Expedição dos Poetas
No embate entre as forças do Governo boliviano e do Governo do Amazonas, a história conta a formação de uma expedição armada, que levou o nome de Floriano Peixoto, mais conhecida como a expedição dos poetas. Composta de boêmios, profissionais liberais e intelectuais de Manaus, sem nenhuma experiência militar, fracassou em combate em 29.12.1900 em Puerto Alonzo.
O Bolivian Syndicate
Um expediente boliviano foi usar os interesses estrangeiros para conter a invasão brasileira à região. Foi assinado em 11.07.1901 entre bolivianos, americanos e ingleses para vigorar a partir de 02.04.1902, o famoso Bolivian Syndicate, com poderes ilimitados sobre a região para a exploração da borracha. Tratava-se de uma ameaça inconteste à soberania brasileira e boliviana. Mas a esses era o recurso que lhes restava.
A Revolução Acreana (SEGUNDA REVOLUÇÃO)
A grande figura desse período é o militar gaúcho Plácido de Castro. Financiado também pelo governo do Amazonas, formou um exército de seringueiros e de oficiais seringalistas. Seringueiro é o trabalhador que extrai a borracha. Seringalista o proprietário que explora a exploração.
A luta começou em 06.08.1902 - data nacional da Bolívia. Durou até 24.01.1903, quando foi tomado Puerto Alonzo, transformada em Porto Acre.
Mais uma vez foi declarado o Estado Independente do Acre, com o objetivo agora explícito de sua anexação ao Brasil.
Era tempo do Governo do Presidente Rodrigues Alves (1902/1906), no qual o Barão do Rio Branco exercia as funções de seu ministro do exterior.
Após as manobras militares vitoriosas, as discussões diplomáticas se seguiram. Em 17.11.1903 foi assinado o Tratado de Petrópolis que rezava a posse definitiva da região pelo Brasil em troca de áreas no Mato Grosso, pagamento de dois milhões de libras esterlinas à Bolívia, cento e poucas mil libras ao Bolivian Syndicate e o comprometimento da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Outro livro de Márcio Souza (Mad Maria) romanceia este último acontecimento.
A seguir, o Tratado do Rio de Janeiro (08.09.1909) põe fim à questão dos limites com o Peru.
Nessas discussões foi invocada a figura jurídica do Utis Possidetis (posse produtiva do território). Os brasileiros de fato já dominavam a região. O autor acredita que esta mesma figura foi utilizada na Província Cisplatina, território anteriormente pertencente ao Brasil, que passou a constituir a República Oriental do Uruguai.
Entre as reações contrárias à assinatura dos tratados com a Bolívia e Peru, destacou-se a atuação de Rui Barbosa, secundado por outros menos reconhecidos.
A região foi transformada em Território Federal do Acre.
A “Revolução” Autonomista (TERCEIRA REVOLUÇÃO)
Este período é marcado pela liderança do Senador Guiomard (José Guiomard dos Santos), militar mineiro que foi governador nomeado pelo Governo Federal para administração do Território.
Como território, o Acre viveu de 1904 a 1962. Nesse período foram inúmeros os movimentos autonomistas, a saber, a revolta do Juruá (1910) e outras mais brandas: 1913, 1918, 1934, 1957, etc.
Em 1962, no governo João Goulart, se deu a criação do Estado do Acre. A partir daí a população pôde eleger sua bancada na Câmara Federal e no Senado Federal como qualquer outra unidade da Federação. Antes tinha poucos representantes. Como território, o Acre não se constituía uma unidade confederada da República. Não tinha autonomia. Seus mandatários eram designados pelo Governo Central, na maioria dos casos, sem mostrar maior interesse pela região, uma vez que cessado o período de seus mandatos voltavam para a região originária. Não foi o caso do Senador Guiomard. Os orçamentos regionais constituíam parte integrante do orçamento da União, o que implicava em dependência econômica e financeira.
Algumas particularidades do novo Estado: seu território é maior do que o do Espírito Santo e o do Rio de Janeiros juntos. Só em 1990 o Acre foi ligado por rodovias ao resto do Brasil: BR-Rio Branco-Porto Velho. Se não é o único trata-se de um dos poucos estados brasileiros em que todos os governadores eleitos foram e são naturais do próprio estado.
A “Revolução” Ecológica (QUARTA REVOLUÇÃO)
O grande personagem desta quadra é indubitavelmente Chico Mendes. É tempo da revolução ambiental, da defesa do trabalhador e da Amazônia brasileira.
Chico Mendes, seringueiro, organizador de sindicatos de trabalhadores locais, líder dos empates com os seringalistas, reconhecido internacionalmente antes de o ser nacionalmente, pregava o desenvolvimento sustentado da região. Não necessariamente a reforma agrária. Não dividir a terra, a floresta é que não pode ser privatizada. A luta da terra foi dando lugar à luta pelo meio ambiente.
Aqueles empates – confronto entre os seringueiros e seringalistas – se deu mais acentuadamente durante os governos militares. A política de ocupação do território levou a inúmeros proprietários do sul-sudeste a se estabelecer na região, acabando com as matas, para começar atividades pecuárias. Esses novos proprietários são ainda conhecidos no Estado pela denominação de paulistas.
Sua expressão e liderança cresceu com o seu assassinato anunciado. Chico avisou por escrito à Polícia Federal, ao Juiz de Direito, às autoridades constituídas da trama para a sua morte. Virou mártir.
Graças à atuação da população local o Acre só foi devastado em suas matas numa extensão de 5% do seu território. Rondônia, Estado vizinho, tem mais de 70% de suas matas destruídas.
A Revolução ainda não acabou. Existe o compromisso de transformar não só o Acre, mas toda a Amazônia em uma terra onde todos, sem exceção – índios, negros, brancos, seringueiros e ribeirinhos – possam viver em harmonia com o meio-ambiente, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento humano e econômico sustentável e com justiça social.
A Senadora Marina da Silva, companheira política de Chico Mendes e sua substituta na liderança do movimento, hoje é Ministra do Meio Ambiente do Governo Federal.
Conclusão
Ao chamar o Acre de Telúrico e Emblemático no título deste artigo o autor considera que da história desta região a nação brasileira pode se espelhar e colher valiosos exemplos para a tão necessária defesa da Amazônia e da Nacionalidade Brasileira.
A cobiça internacional atualmente se volta para a magnífica biodiversidade amazônica, para sua gigantesca reserva de água doce e para as fabulosas jazidas minerais que lá se encontram.
A nova revolução brasileira passa hoje pela defesa de nossas terras, mares, empresas, trabalho, idioma, história, tradições, tecnologia etc. O desenvolvimento sustentável da humanidade passa pela sociodiversidade, biodiversidade e a distribuição da água do planeta, itens que o Brasil, por suas características naturais e históricas, tem que exercer o seu importante papel.
Um alerta final: a militância ecológica internacional pode estar mais interessada em defender os interesses do Primeiro Mundo do que os do Acre ou do Brasil.
sexta-feira, 21 de setembro de 2007
YAWA - O Paraíso reencontrado
Depois de mais de cem anos do contato que massacrou, humilhou e escravizou o povo yawanawá, ele agora resgata sua identidade |
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Juracy Xangai (Yawá Shawã Mashkuru) No começo tudo era lindo. A floresta, os rios, as festas, o amor e até as guerras inspiravam o orgulho de ser yawanawá. Foi assim até apareceram os brancos com suas doenças, matanças e a escravidão. Os sobreviventes foram humilhados, submetidos pela servidão aos senhores dos seringais, para os quais só as pélas de borracha banhadas em sangue de índios e arigós tinham valor. O látex transformado em ouro negro gerava lucro aos exploradores e conforto à burguesia crescente de um brutal Primeiro Mundo que só conseguiu desenvolver seu sistema mercantilista roubando o ouro das Américas. Agora, em nome do progresso e do conforto que roda sobre pneus macios, lançava trevas e horrores aos índios, que, sem nada daquilo, viviam seu paraíso. Os sobreviventes invejavam os mortos, que foram festejar nas matas celestes à espera dos que continuaram penando no purgatório dos seringais. Ali, sua língua e costumes eram tema de piadas; a nudez motivo de abusos; rituais e cultos considerados obra do demônio. Assim, a identidade de ser uma nação tornou-se um fardo pesado demais e, em nome da sobrevivência, muitos renunciaram ao que tinham de mais valor em si mesmos e tiveram vergonha de ser índios. Mas nem tudo isso foi suficiente para apagar do coração e do pensamento dos mais velhos seus conhecimentos, seus costumes, suas cantorias, seus rituais continuados às escondidas até serem resgatados no alvorecer deste novo milênio que promete humanizar a humanidade respeitando raças, usos, costumes e crenças. O sorriso escancarado das crianças saboreando wutã, a beleza das jovens e mulheres com os rostos artisticamente desenhados deixam à mostra seios virgens de maldade. Guerreiros exibindo cocares coloridos trazem às costas, no peito e no rosto pinturas exuberantes em vermelho e preto garantindo proteção contra as doenças e males do corpo e da alma, enquanto os pajés cantam a história da criação divina, das guerras, dos amores, das curas. As brincadeiras sensuais do Festival Yawá (Festa da Queixada) fortalecem a cultura mostrando a exuberância, o orgulho e a glória de ser Yawanawá.
Celebração da natureza e do amor O mundo se curva a Yawá O orgulho yawanawá só aumenta com o reconhecimento mundial de empresas como a indústria de cosméticos norte-americana Aveda, que compra toda a produção de urucum da aldeia e paga pelo uso da imagem desse povo em suas embalagens e propagandas. Transformado em produto, o potencial de sua cultura dá lucro, atraindo turistas de todo o Brasil e de locais tão remotos quanto a Finlândia, Egito e Costa do Marfim, presentes à festa de cinco dias realizada entre 25 e 30 de agosto na Aldeia Esperança, aonde só é possível chegar percorrendo de carro os 60 quilômetros de Tarauacá ao rio Gregório e por ele subindo 12 horas de barco por entre paus, bancos de areia e uma floresta simplesmente encantadora. Grife Yawanawá A empresária Íris Tavares, que há dois anos rendeu-se à beleza dos kãnês (desenhos rituais) da grife Yawanawá impressas nas roupas que comercializa em suas lojas dentro da proposta de valorização ética das “gentes” acreanas, só agora teve a oportunidade de participar do festival. “Desde que conheci Joaquim Yawanawá, senti a energia poderosa desse povo e queria muito vir aqui, mas o dia-a-dia dos negócios não permitia. Então dei um tempo a mim mesma e estou simplesmente encantada com o que vi”, afirmou. E, como não podia deixar de ser, fechou novos negócios. Uma nova visão Presidindo a mais tradicional indústria de alimentos do Acre, a fábrica de Biscoitos Miragina, José Luiz Felício esclareceu: “Vim a convite do senador Tião Viana, porque já tinha ouvido falar sobre a festa, mas não imaginava que fosse assim tão encantadora. Vejo uma cultura de pessoas bonitas, com valores e uma noção de tempo diferentes da nossa. Percebi que não precisamos de tanta coisa para ser felizes. Vejo no rosto de cada um a expressão de alegria que não via na cidade. Quando a gente conhece a gente respeita e pretendo repetir a viagem”. Mil dias de camelo Da terra dos faraós veio Ali Zeitoun, liderando comitiva composta pela família Marwan Azzounit e a representante do Ministério da Cultura do Egito, Hala Barakat, viajando 24 horas de avião só para chegar até Rio Branco. “Se fizéssemos essa viagem de camelo, gastaríamos mil dias. Estamos muito felizes por estar aqui, especialmente encantados pela organização desse povo e o fortalecimento de sua cultura pura e maravilhosa”, comentou, bem humorado. Exemplo a ser seguido Anchieta, líder do povo arara de Marechal Thaumaturgo, participou da festa e declarou: “Este festival mostra a importância e a beleza da cultura indígena. Isso nos dá força e ânimo para que também nós, orientados pelos mais velhos, possamos resgatar nossa cultura, usos e costumes. Aproveito para convidar todos para o terceiro Festival Arara, em janeiro do ano que vem”. Cultura pura Denise e Ronam vieram de Curitiba (PR) com os filhos para participar da festa. “Aqui vejo a verdadeira expressão da cultura humana entre pessoas que se respeitam, honram e tratam a todos com bom coração”, disseram. Sonho de milhões Eduardo Marques, assessor do senador Tião Viana, vive há 26 anos em Brasília, mas recorda com saudades a infância passada ao lado pai, desembargador Lourival Marques, com quem conheceu comunidades seringueiras e a pessoa do mestre Irineu Serra. “Milhões de pessoas no mundo gostariam de estar no meu lugar neste momento vendo esta festa maravilhosa que me deixou emocionado e motivado a apoiar mais os projetos que favorecem as comunidades indígenas”, declarou.
O ressurgimento pleno de uma identidade cultural após cem anos de dominação soa como um milagre que teve de ser buscado à custa de muito suor e trabalho por parte das novas lideranças, com o apoio dos mais antigos e demais integrantes desse povo. Biraci Brasil, o Nixi Waká, que já teve 12 esposas, das quais nove lhe renderam 22 filhos, chefe político e um dos principais líderes espirituais da comunidade, é um dos cinco rapazes enviados para a cidade no início dos anos 70 pelo tio Raimundo, com a missão de estudar e conseguir ajuda numa época em que o governo do Acre dizia nem existirem mais índios no Estado. Conheceram Antônio Macedo e Terry Aquino, que os puseram em contato com indigenistas, estudiosos e autoridades, buscaram o chefe Raimundo, que nunca tinha saído da aldeia, e o levaram para Brasília, que em 1975 reconheceu a existência de índios no Acre, o povo Yawanawá. Em 1984 houve o reconhecimento da terra e em 1986, a demarcação de 92.850 hectares, agora ampliados para 193 mil hectares, que cobrem toda a bacia desde as nascentes do rio Gregório e afluentes. Nessa Terra Indígena do Rio Gregório vivem mais de 630 índios yawanawás e katuquinas. Só na aldeia Nova Esperança, 430 yawanawás, além das aldeias Mutum, Matrinchã, Amparo, Tibúrcio, Escondido e Sete Estrelas, esta última com dominância katuquina. Os dois povos tradicionalmente convivem e casam entre si, mas apresentam diferenças marcantes nos costumes e rituais. Reencontrando-se Depois de viver quase 20 anos militando no movimento indígena, inclusive como assessor nacional e representante regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), Biraci tomou uma nova consciência sobre si e seu papel junto à comunidade, voltando à aldeia no ano 2000 com o propósito de restaurar a comunidade que ainda sofria as conseqüências negativas dos anos de servidão e do abandono total com a falência dos seringais. Além do poder político e espiritual herdado do avô Antônio Luiz, o Iva Sttiho, afastou-se das quatro esposas para penetrar no caminho da espiritualidade necessário à liderança. “Estamos voltando para casa com uma bagagem de conhecimento, e o maior desafio está em conciliar as duas culturas aproveitando o que a tecnologia pode nos oferecer sem abrir mão da nossa identidade”, destacou. Nessa época também retorna à aldeia Joaquim Taskan, que estava vivendo há quatro anos nos Estados Unidos, onde militava junto à organização voltada à defesa dos direitos dos povos indígenas. Ele lidera a Organização dos Agricultores e Extrativitas Yawanawá (Oyaerg), encarregada dos negócios da aldeia. “Reunimos a comunidade, que estava fragmentada, para reanimar o espírito do povo focados em três pontos que eram como vivíamos antes do contato, o que mudou com o contato e que havia sobrado depois de tanto tempo de servidão. Os antigos disseram que nada havia sido perdido porque haviam guardado tudo no coração e que poderiam ensinar isso aos jovens. Pensamos em fazer uma grande festa onde mostrássemos nossos cantos, nossa música, rituais e a expressão de nossa cultura e assim aconteceu o primeiro Festival Yawa em 2001”. Nisso foi decisivo o apoio do amigo canadense Josh Sage que conseguiu de Hurt Phenix, mãe de Joaquim Phenix a doação de três câmeras, com as quais, foi preparado o documentário Yawa. Através dele o mundo passou a conhecer e apoiar material, moral e financeiramente a recuperação deste povo. “Eu mesmo que nasci e me criei na aldeia, só com 30 anos de idade pude conhecer a festa de meu povo. A presença do governador Jorge Viana no segundo festival valorizou ainda mais o evento que agora também recebe apoio pessoal do senador Tião Viana, políticos e empresários do Acre”. Taskan confessa: “Chorei quando meu pai, disse que já poderia morrer satisfeito por saber que tinha feito sua parte ao garantir que nossa cultura sobreviva para sempre nas nossas crianças agora tem orgulho em falar nossa língua, cantar nossas musicas e ouvir nossa história dividida em tempo das malocas, tempo da servidão, conquista da terra e o resgate de nossa cultura étnica”.
Canto de agradecimento Acompanhando o esposo senador Tião Viana, a arquiteta Marluce esclareceu: “É minha segunda visita a este festival, que, além de celebrar a natureza, a paz e o amor no dia-a-dia, resgata a história de um povo que encontra sua força na sabedoria dos antepassados”. Após receber uma bênção da pajé Rusharro, Marluce declarou: “Este é um ritual no qual a pessoa que faz se doa força e energia a quem recebe com fé. Dar de si é a mais bela expressão de amor ao próximo, por isso recebo esta bênção com humildade e respeito”. Logo na chegada à aldeia, Marluce manifestou seu agradecimento à acolhida do povo yawanawá convidando os presentes a entoar com ela o canto que diz: “Fica sempre um pouco de perfume nas que oferecem rosas, nas mãos que são generosas”. A pajé Rusharro respondeu: “Vocês demonstram respeito e carinho por nós ao vir de longe numa dura viagem, e tudo que podemos oferecer é apenas a nossa hospitalidade, o nosso amor, carinho e dedicação na esperança de que ajudem a consolidar nossos sonhos conforme nossos costumes”. Famílias que se encontram Antônia Calazans de Medeiros Apurinã, ou simplesmente Capía (nambu-preta), conheceu Roque Yawanawá durante um dos primeiros encontros de |
“Fiquei sabendo que ele pertencia a um povo guerreiro e que vivia muito distante. Era estudante e militava no movimento indígena e eu vivia na aldeia Camapã, na estrada de Boca do Acre. Gostamos um do outro e estamos juntos há 17 e esta é a primeira vez que venho à aldeia trazer meus filhosYawá Narenê, Tatá, Yanaranê Shitã e Yawa Rawan para conhecer a festa do nosso povo”.
A participacão e a emoção de Capía em todas as danças e rituais eram constantes, e ela explica o motivo. “Nossa aldeia Apuriná fica no quilômetro 124 da estrada de Rio Branco para Boca do Acre, à beira da estrada e entre fazendas que causaram um grande impacto sobre nossa gente, tanto que a maioria dos jovens deixou de falar a língua, rituais e costumes de nossos ancestrais. Em 280 pessoas, só meu tio Mariá e meu pai Ariúca falam a língua perfeitamente. Alguns têm até vergonha de dizer que são índios”.
Estimulados pelos festivais Yawanawá e de outros povos do Juruá, os apurinãs já começam a resgatar sua cultura.
Casamento à moda Yawanawá
A névoa da manhã vai cedendo à luz do sol que desponta no horizonte e de longe já se pode ouvir o som das machadadas com que Macu Mawá Yusmá parte a lenha para abastecer a cozinha da futura sogra.
Aos 20 anos, ele demonstra força no preparo do roçado, valentia como caçador e pescador experiente, sabe como construir uma casa, então está pronto para casar, mas, apesar de seus pais concordarem e da aprovação da sogra e do sogro, ele está ansioso à espera de três dos cinco cunhados para pedir também a eles, como é de costume na aldeia nos acertos de casamento.
O Festival Yawa, assim como os Mariris (festas) de antigamente, tem, além da função de agradecer pelas dádivas da natureza e celebrar a vida, a oportunidade para que rapazes e moças conheçam primos e outros jovens para futuros relacionamentos que darão continuidade ao povo. Quando ele se casa deve obediência ao sogro pelo resto da vida, ajudando nas derrubadas, caçadas e outros serviços.
FONTE: http://www2.uol.com.br/pagina20/16092007/especial.htm
domingo, 16 de setembro de 2007
O lugar da guerra
