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INTRODUÇÃO
“Desde que há mundo, nenhuma autoridade ainda teve boa vontade para se deixar tomar como objeto de crítica”. Nietzsche, Aurora.
Ao se tomar contato com a discussão em torno do autoritarismo é comum vincular a sua manifestação como sendo algo que se identifica somente com regimes de força oriundos da caserna ou de ditaduras civis. Especificamente sobre a ocorrência das ditaduras militares, há um vasto olhar acerca deste fenômeno, principalmente em relação à América Latina e ao Brasil, seja no volume de obras ou nas distintas visões interpretativas
[1].
Em parte, isto contribui de maneira significativa às várias tentativas que buscam compreender tal questão. Mas é meu intento fazer uma discussão mais ampliada sobre os pressupostos teóricos e conceituais que dizem respeito a esse problema. Pois, embora toda ditadura — civil ou militar — careça do componente autoritário, o autoritarismo político não se expressa somente em uma situação de ditadura. Nesta, ele se exacerba.
Tanto o adjetivo autoritário, quanto o substantivo autoritarismo, são empregados regularmente em três contextos a saber: estruturas de sistemas políticos, disposições psicológicas de certos indivíduos ou para ressaltar determinadas ideologias políticas
[2]. Na perspectiva política que irei trabalhar, são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governamental e declinam em gradações diferenciadas o consenso, mantendo o poder político nas mãos de uma só pessoa, de um órgão ou de um grupo específico, colocando em posição secundária as instituições representativas e exacerbando de maneira significativa o predomínio do poder executivo.
Para melhor compreensão é necessário afirmar, que mesmo fora de situações específicas relacionadas aos acontecimentos que discuto neste trabalho, a possibilidade de ocorrência dos conflitos abertos — bem como a adoção de procedimentos autoritários na esfera pública — estão presentes na própria formação dos Estados Nacionais no ocidente, que comporta a idéia de uma ordem essencialmente de origem burguesa. Uma Razão de Estado construída a partir de meados do século XVII para combater a “desordem”, impedir e controlar os conflitos originários das classes em luta, garantindo assim a reprodução de uma ordem idiossincrática, baseada objetivamente nas doutrinas legitimadoras do status quo do chamado Estado Moderno.
Ao tratarem especificamente do caso brasileiro e de suas peculiaridades, autores das mais variadas matizes ideológicas e interpretativas sugerem em seus estudos, que o fenômeno autoritário é algo intrínseco ao Estado erguido no período colonial/escravista, marcado sobremaneira por uma rede variada de relações sociais complexas que envolviam personalismo, autoritarismo, clientelismo, patrimonialismo, corporativismo e compadrio
[3]. Este legado perdurou posteriormente, sofrendo somente alterações e recombinações; mas, na sua essência, permaneceu sendo um elemento duradouro e indelével na formação e desenvolvimento da “sociedade nacional”
[4].
Florestan Fernandes (1975) ao estudar alguns processos sociais brasileiros demonstra que eles sempre ocorreram pelo alto, sem participação ou clamor popular que pudessem dar a estes acontecimentos, um verniz de autonomia e mobilização das classes sociais subalternas.
Para ele, a revolução burguesa ocorrida no Brasil aconteceu sem rupturas políticas fortes, não sendo capaz de construir uma institucionalidade democrática com incorporação social. A guisa de ilustração, assim foi com a abolição da escravidão, — que embora extremamente necessária e justa, foi resolvida por um Decreto-Lei — e, com a adoção do regime republicano, implantado através de um golpe militar. Partindo destes pressupostos, isto reforça ainda mais a característica excludente, hierárquica e centralizadora do exercício do poder existente na formação da Nação brasileira e em particular, do Estado Nacional.
Analisando as experiências do período pós 1930, comumente batizado de Segunda República, Wanderley G. Santos (1988) destaca três formas de experiências autoritárias na política brasileira: a primeira seria o Integralismo, que oriundo do império, sobrevive na República e é baseado nas desigualdades naturais entre os homens e no direito diferenciado; a segunda é caracterizada pelo Estado Novo, que é marcado pela acentuada intervenção e uso de mecanismos regulatórios do Estado, no intuito de disciplinar as questões sociais e assegurar certos níveis de eficácia econômica através do processo de industrialização. Conjugando ainda um grau acentuado de paternalismo e a busca de subordinação dos trabalhadores urbanos, ao chefe político; por último, o autoritarismo instrumental com seu viés pragmático e temporário — geralmente de cunho militar —, onde os procedimentos autoritários visam edificar uma sociedade liberal, estabelecendo mecanismos de um Estado forte como sendo momentâneos e necessários para corrigir, dissolver desvios, fragilidades e tendências de desagregação da ordem social e nacional.
A partir dessa sumária exposição, quero apontar para questão de que no Brasil se conviveu muito pouco com a manifestação e prática democrática. Deixando de lado o período anterior a 1889, e concentrando o enfoque nestes poucos mais de cem anos republicanos, percebe-se que até os anos trinta o conceito de democracia também não se aplica aos procedimentos e práticas políticas existentes até então.
Entre 1931 e 1934 passa a funcionar um regime provisório muito frágil do ponto de vista político e institucional; somente de 34 a 37 há a primeira e breve experiência de democracia formal de fato, substituída pela ditadura estadonovista que subsiste até 1945. Na seqüência, ocorreu a implementação da chamada democracia populista (45/64)
[5], rompida com o golpe de 1964 e legando a ditadura militar que perdurou até metade dos anos oitenta. Ou seja, durante todo o último decênio do século XIX e todo o século XX, conviveu-se de forma alternada pouco mais de trinta anos com a democracia representativa em seu sentido moderno e universalista
[6].
Levantadas essas questões preliminares e de ordem mais geral, quero deixar patente que são a partir destas considerações maiores que irei discutir, dentro da temática do autoritarismo político, o assunto que abordarei neste trabalho. Do ponto de vista pessoal, a escolha e os caminhos a serem percorridos estão ligados à minha formação acadêmica. Por isso, estas problematizações advêm de reflexões sobre as quais me debrucei durante a minha graduação em Ciência Política
[7], ao abordar dentro desta perspectiva, a transição política de 1982 no Acre.
Nesta monografia, ficou a preocupação de que práticas autoritárias também eram comuns e se explicitaram durante o interstício em que vigorou a ditadura militar no período pós 64 e a chamada abertura política. A princípio, a meta para o mestrado era fazer uma abordagem que englobasse somente os anos em que vigoraram os governos biônicos indicados pela ditadura militar (64/82). Mas ao olhar para o caso acreano, me deparei com a presença destas práticas como já presentes no período de formação política do Território do Acre, no início do século passado. É em função disto, que o trabalho aqui apresentado busca modestamente discutir as “As raízes do autoritarismo no executivo acreano — 1921/1964”.
Passarei agora para o ponto fulcral deste trabalho, que procurará colocar em relevo algumas questões – tanto de ordem geral quanto específica – sobre como se deu no Acre a convivência da sociedade com procedimentos de cunho autoritário emanados a partir do Estado
[8], onde este passa a conformar e dominar os espaços públicos através de suas instituições.
O Acre como Unidade da Federação brasileira se insere no contexto nacional — geográfica e politicamente — de forma gradativa, conflituosa e tardia. Contribuíram para isto acontecimentos como a República independente de Luís Galvez
[9]; o levante liderado por Plácido de Castro visando a anexação, posteriormente ratificada com o Tratado de Petrópolis; a luta autonomista
[10]; a unificação departamental e a elevação a Estado federado ocorrida somente em 1962. Acontecimentos complexos e de abordagens amplas, que acabaram forjando a “invenção” de uma certa identidade ao Acre e aos acreanos.
Mesmo após sua inserção no mapa brasileiro, os desígnios políticos-administrativos do Acre ficaram sob a incumbência da União, representada pelas oligarquias
[11] dirigentes da chamada República Velha e seus pares locais. Estas oligarquias, se expressavam na concentração do poder nas mãos de um grupo restrito de pessoas, ligadas entre si por interesses ou privilégios particulares, que se serviam de todos os meios ao seu alcance para conservá-los através de influências conjugadas com o apoderamento da máquina estatal.
Com a revolução de 30 e a posterior instauração do Estado Novo varguista, o Acre, na condição de Território Federal, não teve essa característica alterada: continuou sob governos que não expressavam a vontade manifesta dos governados. Todos estes sendo todos formados basicamente por militares ou profissionais liberais, — como médicos e advogados — até mesmo durante a fase da chamada democracia populista brasileira.
Somente no ocaso do período conhecido por populismo democrático é que ocorre a elevação do Acre a Estado federado (15/06/62), se efetivando, de fato e de direito, algo que já existia em forma de luta primária desde o momento da anexação do território à União. Ou seja, a busca de uma maior autonomia política do Acre e sua formal independência administrativa, que se implementou, permeada de contradições e peculiaridades, a partir do Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal pelo então deputado José Guiomard Santos
[12].
No seu conjunto, a proposta desta dissertação é colocar em relevo essas questões, procurando evidenciar alguns aspectos sobre a gênese da formação política do Acre e das práticas autoritárias presentes no seio do poder executivo, como marca singular da faceta do Território acreano.
Inicio minha análise traçando um panorama mais amplo sobre as bases formadoras do autoritarismo no Acre, percebendo-o como sendo uma prática originária de um processo longo e duradouro, indelevelmente associado à própria formação política desta unidade federativa. Tendo prevalecido como algo constante ao longo do seu desenvolvimento, exacerbando-se de maneira mais evidente no período posterior a 64 com a instituição do autoritarismo militar explícito.
Intenciono analisar, na esfera do poder executivo estadual, as características mais gerais das adoções de medidas políticas de cunho autoritário durante o período compreendido entre os anos de 1921 e 1964. Este recorte temporal se justifica por englobar um período bastante significativo do ponto de vista da organização burocrática e administrativa do Acre.
Se entre 1904 e 1920 o Território era dividido em Departamentos administrativos, é a partir de 1921 que ocorre a unificação de fato do Território e a centralização do poder executivo. Os anos 40 e 50 são marcados pelas disputas entre Guiomard Santos e Oscar Passos e, a posterior elevação do Acre a Estado federado em 1962 coincide com as primeiras eleições diretas para governador, tendo sido eleito o professor José Augusto de Araújo. Em seguida vem o golpe militar, marcado pela vigência de governos biônicos impostos pela ditadura, tanto no plano nacional quanto local.
Procuro acompanhar ainda, questões relacionadas à forma de atuação e o papel desempenhado pelo Estado a partir do norte que as classes dirigentes lhe imprimiram. Este Estado procura acima de tudo assegurar uma ordem vigente, intencionando manter sob seu controle o conflito entre grupos e interesses antagônicos. Consignado a isto, busco identificar também os interesses, as principais forças e atores políticos envolvidos no período citado, mostrando ainda o impacto do autoritarismo e do burocratismo
[13] e o “legado” que ambos deixaram a posteriori no conjunto da “sociedade acreana”
[14].
Por fim, me baseio em um entendimento ex-anti e empírico que me leva a dizer que no Acre, pelas suas características peculiares, as práticas de cunho autoritário remontam o Território, sobrevivem no momento em que este se eleva a Estado e se reforçam com mais intensidade a partir do golpe de 64. Por isso, o meu interesse em problematizar estas questões circunscritas no período supra citado.
Acredito que as questões levantadas aqui como relevantes, já servem como base para justificar o meu interesse pelo assunto proposto, buscando uma reflexão e uma compreensão mais acurada a respeito dessa temática. Por outro lado, o presente trabalho se constitui e se insere numa perspectiva que busca dialogar e refletir, com e sobre a história política acreana, a partir das questões preliminarmente apontadas.
Procuro trilhar em uma linha historiográfica voltada para uma abordagem política, no intuito de interpretar as relações e contradições existentes entre as oligarquias dirigentes e outros grupos sociais que compuseram e construíram a “sociedade acreana”. Sem com isto me pautar em determinismos, dogmatismos ou em uma visão maniqueísta do problema.
Ao fazer preliminarmente essas digressões mais gerais, ressalto que a discussão dessas categorias e conceitos até agora citados devem ser considerados antecipadamente de acordo com o sentido que eles possuem no seu contexto histórico, bem como suas transformações e a incorporação de novos significados que passam a adquirir. Considero de suma importância fazer estas ressalvas para melhor caracterizar os constructos utilizados na análise interpretativa.
A intenção é não concebê-los como sendo abstratos e deslocados de materialidade, nem destituí-los de estarem intimamente ligados a modos de vida distintos. Portanto, não tendo eles uma aplicabilidade automática sem que se faça uma discussão entre o referencial teórico e os processos históricos que estão em análise.
Mesmo assim, se os múltiplos paradigmas estão postos, talvez seja preciso abordá-los tendo como pressuposto que eles não explicam nem atribuem conexões absolutas, que tornem a compreensão imediata e total entre o sujeito e o anacrônico “objeto”. Isso ocorre porque os sujeitos históricos, e o historiador em particular, não chegam nunca a finitude da narrativa e da interpretação a respeito do passado. Não são dados a conhecerem todas as alternativas possíveis do amanhã e não têm controle sobre as situações do presente. Com isto, o saber histórico se torna o singular e o relevante de um passado reconstruído a posteriori.
Desta forma, embora o presente temporalmente seja um produto do passado, inversamente o passado ao “ser dito” se torna algo construído a partir do presente, através das múltiplas visões daqueles que procuram interpretá-lo
[15]. Segundo José Luiz Fiori (1995), “são as expectativas que fazem do futuro um elemento ativo no presente, possibilitando a coexistência de uma dimensão que embora não seja ainda vivida e conhecida, comporta uma certa lógica e é fundamental para a compreensão daquilo que está sendo vivido” (idem, p.17). Assim, o presente está sempre “prenhe” de uma perspectiva futura que já existe como potestade neste mesmo presente sem, no entanto, este futuro ser conhecido e entendido antecipadamente. Talvez devido a essas complexidades o fardo da história seja tão pesado.
No tocante ao processo de pesquisa, me ative fundamentalmente em leituras de jornais e documentos dos Arquivos do CDIH/UFAC, Museu da Borracha, Instituto Lígia Hammes, Arquivo Geral do Estado do Acre, Assessoria de Comunicação da Policia Militar do Acre, Biblioteca da Assembléia Legislativa do Acre e Biblioteca do Tribunal de Justiça do Acre, além de acervos em Cruzeiro do Sul e da Biblioteca Nacional (RJ). Como fica evidente nesta relação, todos os Arquivos notadamente estão vinculados a órgãos estatais, construídos e mantidos pelo Estado e pelos poderes constituídos.
Lugares por definição, que guardam certas “memórias”, que estabelecem o que deve ser preservado e lembrado; por oposição, o que deve ser silenciado e esquecido. Além, do material bibliográfico — geral e regional — em que me apoiei para discutir os princípios teóricos-metodológicos que nortearam e fundamentaram este trabalho. Junto a estas observações, tenho a compreensão de que os documentos e outras fontes não “falam por si mesmo”, contém intencionalidades subjetivas e objetivas, silêncios, leituras invertidas e discursos de práticas sociais permeados de interesses, estratégias e propósitos.
Um outro ponto a ser explicitado na decorrer da pesquisa, refere-se a dois problemas que se colocaram a priori como entraves na consecução deste trabalho. O primeiro deles se configurou na escassez de fontes escritas. Além dos jornais, não há quase nada escrito e desconheço a existência significativa de documentos oficiais disponíveis. Devido essas singularidades, fui levado em certa medida a dialogar e discutir as interpretações destes acontecimentos, a partir de relatos jornalísticos, entrevistas e depoimentos. No caso destes últimos, isto foi proporcionado por aqueles que, em maior ou menor grau, vivenciaram estes eventos e processos sociais em graus diferenciados de atuação e olhar interpretativo.
Desta forma, um alento para esta deficiência documental primária nos é dada por Fustel de Coulanges (apud Paz, 1996) ao afirmar que embora o historiador deva permanecer próximo ao documento, alerta que o mundo histórico não pode necessariamente ser reduzido a um texto. Contudo não se pode abrir mão, como ressaltou Michel de Certeau (1995, p. 19), de um sistema de referências. Sistema este que sempre contém uma filosofia implícita e particular que remete à subjetividade do autor. Esse entendimento se aproxima em muito da visão de Hayden White, (1994) que afirma ser o “fato histórico” algo que não é antecipadamente dado, mas que elaboramos a partir de certas indagações que fazemos ao passado.
Outro fator está relacionado com os marcos temporais, que embora do ponto de vista macro já estejam delimitados, existem micro-tempos que evidenciam a indefinição clara de limites. Simultaneamente, isto leva a optar em reduzir fatores e atores, implicando assim que se considera a priori alguns, dentre muitos, como efetivamente significativos em relação a um determinado acontecimento a ser analisado. Inspirado em Fernand Braudel, José Luís Fiori (1995) indaga, “se os inúmeros ‘rios do tempo’ correm de forma integrada, conquanto estabeleçam curvas e confluências não coincidentes, será possível a cada navegante descobrir a lógica de sua vertente sem que conheça a dos demais?” (idem, p.32). Certamente, este é um problema que aflige a todos aqueles que se voltam para o interpretar das ações humanas. Uma resposta metafórica e pessoal a esta pergunta, seria afirmar que nos é dado a conhecer apenas trechos ínfimos de alguns dos inúmeros “rios do tempo” e as águas estão sempre turvas, onde cada um observa e analisa aspectos singulares dentre os diversos existentes.
Compreendo que a abordagem é complexa e a diversidade de interpretações que ela comporta é muito grande. Isto também ocorre pelas implicações e injunções de ordem teórico/metodológica que se inserem em tal abordagem, como também pelas singularidades presentes em qualquer evento histórico e pelas escolhas das veredas que foram feitas.
Concomitante a isto, entendo que a percepção do social não pode ser encarada como sendo neutra, sem produzir estratégias e práticas pelo historiador, pelos sujeitos e pelos diversos grupos sociais envolvidos. Assim, “fugirei” das prenoções rankeanas de uma história isenta, de falar do passado pelo passado, como se este não tivesse uma conexão com o presente e com aquele que a escreve.
Contrapondo-se a esta ótica, parecem ser bastante apropriadas as observações de Michel de Certeau (1995, p. 17) ao afirmar não existir considerações e leituras capazes de apagar as particularidades do tópos de onde falo, domino e conduzo minha investigação. Porque na escrita da História, e para o historiador, o sistema de pensamento está intimamente ligado a “lugares” que englobam aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais.
Os tópicos levantados aqui não comportam explicações definitivas, nem é minha pretensão procurá-las. Isso recoloca todos aqueles que lidam com a dimensão humana, inclusive o historiador, em uma posição de construtores de visões particulares e interpretações que jamais podem adquirir a etiqueta de absolutas.
No entanto, deve-se tomar cuidado com as visões enviesadas como a de White, que concebe a história como sendo feita da forma que o historiador achar melhor e que este faça dela o que quiser (apud Paz, 1996, p. 194). Não concordo com esta assertiva da negativa radical de um mínimo de pressupostos no estudo da História.
Entendo que é somente a busca do conhecimento, a problematização e a dúvida metódica que constroem algumas certezas, que embora parciais e discutíveis são necessárias. Como afirma Agnes Heller (1981) com bastante propriedade, compreender a história significa trazer os fenômenos e as experiências vividas para dentro do nosso mundo, procurando explicar e conhecer o que antes era obscuro e com isto, promovendo uma certa inteligibilidade sobre o passado.
Traçadas estas observações, considero de vital importância discutir o contexto histórico dos acontecimentos a serem analisados em meu estudo, articulando-os com os constructos que também são comuns a outras ciências, notadamente a Ciência Política e a Sociologia. Pois, dialogando com as suas respectivas categorias e paradigmas, entendo que se possa fazer uma análise fundamentada em torno do político e do social de maneira mais consistente. Como bem observou Fernand Braudel (1980), “todas as ciências sociais se contaminam umas com as outras; e a História não escapa a estas epidemias. Daí, essas transformações de ser, de modos ou de rostos” (p. 125).
Após essas explanações e considerações em torno da história enquanto área de produção e entendimento dos acontecimentos, e das múltiplas visões dos determinados autores aqui citados, ressalto que procurei me ater e manter uma proximidade maior com aqueles autores que considero importantes para o desenvolvimento, tanto teórico quanto metodológico, de meu estudo.
Reconheço, como já foi antecipadamente colocado, que há uma proximidade argumentativa com a Sociologia e a Ciência Política, que contribuíram para a execução deste trabalho proposto. Assim como Carr, entendo que “quanto mais sociológica a História se torna, e quanto mais histórica a Sociologia se torna, tanto melhor para ambas” (in Hunt, 1992, p. 02).
Acredito que essa percepção da contribuição e das trocas entre as disciplinas são essenciais para o surgimento de novas abordagens e perspectivas analíticas, que em vez de anular, somam e tornam o conhecimento sobre os eventos passados mais ricos através dos múltiplos olhares. Talvez haja aí a complementaridade que Max Weber achava existir entre as ciências humanas, que segundo ele se orientam em duas direções: uma relacionada às causalidades históricas, daquilo que só ocorre uma única vez; e a outra seria a causalidade sociológica, que reconstruiria funcional e conceitualmente as instituições sociais.
Estruturalmente este trabalho está organizado e dividido em três capítulos, a saber:
— Capítulo I – A presença do Estado e sua conformação como centro do poder político: a hipertrofia do executivo — Procuro neste tópico ressaltar o caráter autoritário da formação e o direcionamento político do Território do Acre nas suas diversas fases, que vai desde sua anexação ao Brasil em 1903
[16], passando pelas várias organizações administrativas, dando maior ênfase no período após 1920, quando ocorre a unificação administrativa. Para efeito didático, compreendo este período como sendo composto de quatro fases: a primeira está circunscrita entre 1904
[17] e 1920, quando o poder executivo era descentralizado nos Departamentos; a segunda entre 1921 e 1930, quando os governadores (Delegados da União) passam a ser nomeados; a terceira vai de 1930 até 1937, com a figura dos Interventores Federais e a última de 1937 a 1962, quando novamente os governadores voltam a serem nomeados;
— Capítulo II – Do Movimento Autonomista à elevação do Acre a Estado: mudanças e continuísmos — procuro colocar em evidência a luta do Movimento Autonomista, que desde os primórdios da anexação do Acre ao Brasil começou a tentar elevar o Território à condição de Estado federado. Ressaltando aspectos relevantes que marcaram a trajetória dos grupos em luta, contra ou a favor da autonomia; incluindo ainda as disputas políticas entre Guiomard Santos e Oscar Passos. Entendendo por princípio, que o desfecho desta contenda pouco acrescentou para diferenciar o legado autoritário oriundo dos tempos do Território;
— Capítulo III – De José Augusto ao capitão Cerqueira: fragilidade política, falta de hegemonia e exacerbação do autoritarismo no executivo — Aqui ressalto alguns aspectos relacionados aos conflitos e embates, — de cunho partidário e de busca de hegemonia política — enfrentados pelo governo de José Augusto. Este foi o primeiro governador constitucionalmente eleito e logo deposto pelo golpe de 64 em virtude do rearranjo político que ocorreu em âmbito nacional, açodado mais ainda pelas peculiaridades da política local. Após sua queda, assume o poder o capitão do Exército Edgard Pedreira Cerqueira, que imprime inicialmente uma série de medidas, visando punir os atos “subversivos” praticados por José Augusto e seus auxiliares durante o curto mandato frente ao executivo acreano.
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[1]Ver capítulo III, tópico 3.3.
[2]Cf.: Stoppino (1993), pp. 94 e ss.
[3]Interessantes reflexões acerca dos conceitos destes termos, podem ser encontradas em Faoro (2000); Prado Júnior (2000); Holanda (1976); Freyre (1973); e, Leal (1997). Cf. Bibliografia.
[4]O termo “sociedade nacional”, remete a um conjunto de universais abstratos muito próximos: Estado, Nação, Povo, País e Identidade nacional. Vistos como totalidades uniformes onde as pessoas se sentem ligadas por uma rede de vínculos percebidos como sendo comuns, que os mantém unidos e os fazem sentirem se diferentes dos “outros”, provocando uma alteridade coletiva. Estes termos, geralmente estão ligados à idéia de uma sociedade sem oposição, na qual os conflitos foram dissimulados na identidade da sociedade consigo mesma, produzindo ideologicamente uma fusão que procura coincidir indivíduo, sociedade e Estado.
[5]Cf. entre outros, Weffort (1980); Ianni (1988) e, Ianni (1989).
[6]Para este caso, e a título de didatismo, explicitarei alguns elementos mínimos, sine qua non, apontados por diversos autores para se caracterizar, sem definir, a existência da democracia: eleições livres e regulares para cargos executivos e legislativos, sufrágio universal, universalização do direito, liberdade de expressão e de associação a todos cidadãos. Como não cabe fazer aqui uma discussão acerca da democracia representativa, indicarei aqui apenas alguns autores que lançam distintos enfoques sobre esta questão: em um plano mais geral Sartori (1986), Hirst (1992), Bobbio (1986) e Dahl (2001). Sobre as democracias latino-americanas ver, entre outros, O’ Donnell (1993) e O’ Donnell (1997). Cf. Bibliografia.
[7]Cf.: Silva (1998).
[8]Reporto-me aqui ao sentido amplo de Estado, que engloba tanto o poder público federal (União); quanto territorial (Acre).
[9]Luiz Galvez Rodrigues de Árias, espanhol que trabalhou na embaixada de seu país em Buenos Aires; depois seguiu para o Brasil e se estabeleceu em Manaus, onde trabalhou primeiramente como jornalista e depois no Consulado boliviano em Belém, quando toma contato com a “Questão acreana”. Figura folclórica e controversa que em 14 de julho de 1899, proclamou o Acre Independente (Governo do Estado do Acre, 1999). A intencionalidade da data coincidindo com a revolução francesa de 1789 e as compras adquiridas previamente em Manaus não foram por acaso.
[10]Embora o Projeto de Lei nº 4.070 que redundou na elevação do Acre a Estado tenha sido apresentado em 1957; muito antes, em 1908, o deputado cearense Francisco Sá já tinha apresentado semelhante Projeto na Câmara Federal, depois reapresentou com algumas alterações o mesmo Projeto no Senado Federal em 1915, ambos foram rejeitados. Somente em 1919 seu Projeto é reapresentado e aprovado com substanciais alterações, dando ao Acre a centralização administrativa, mas negando-lhe o estatuto de Estado. Cf. Craveiro Costa (1974).
[11]Semânticamente deriva do grego e significa governo (arché) de poucos (oligos). Para Ianni (1989), as oligarquias no Brasil são compostas por lideranças políticas e econômicas onde o poder é exercido pelo mesmo grupo e pessoas interpostas, em nome ou em benefício de uma classe social bastante reduzida e solidária no controle do poder (ibidem, p. 47).
[12]Cf. Costa (1998).
[13]Para Saes (1992), em A formação do Estado burguês no Brasil, o “burocratismo” é um sistema de organização dos servidores do Estado (civis e militares) que os enquadra em determinadas práticas e regras jurídicas, construindo uma tendência ideológica própria desta categoria, baseada na impessoalidade e não-monopólio das funções, hierarquia vertical. Ou seja, qualquer um a partir da competência profissional pode desempenhar as mais variadas funções dentro do aparelho estatal; com isto, procura-se descaracterizar o caráter de classe do Estado.
[14] O termo sociedade acreana encontra-se ao longo do trabalho “aspado” devido ser muito amplo e vago conceitualmente, assemelha-se ao termo sociedade nacional, já comentado na nota 04 desta introdução.
[15]Discussão levantada por Carl Becker, in Wehling, (1994, p. 128).
[16]Após a vitória do exército liderado por Plácido de Castro contra os bolivianos, o governo federal temendo uma retomada dos conflitos, envia para o Acre um destacamento militar comandado pelo general Olímpio da Silveira, que obriga os acreanos a deporem as armas e leva a questão para o âmbito diplomático. Do momento em que termina o conflito armado entre brasileiros e bolivianos e a assinatura do Tratado de Petrópolis, o Acre foi dividido em duas zonas administrativas: o Acre Setentrional (Juruá/Tarauacá), governado pelo general Olímpio da Silveira e o Acre Meridional (Acre/Purús), governado por Plácido de Castro. Cf. Souza (1994, p. 134).
[17]Tenho como ponto de partida o Decreto 5.188, de 07 de abril de 1904 que instituiu a criação dos três Departamentos administrativos (vide mapa 01 em Anexos).