Se hoje temos o Acre dentre os Estados da República Federativa do Brasil devemos ao Herói José Plácido de Castro (Projeto de Lei do Senado Federal, n° 56, de 2000).
Pouco lhes importa a procedência do herói. A sua origem. Ou sua moral. O que é preciso, e se impõe desesperadamente é salvar o Acre (LIMA, 1998, p.50).
Temos um herói para dar a conhecer a todos os brasileiros! (VIANA, T. in.: CASTRO, 2002, p.11).
O discurso fundador do Acre aponta o gaúcho Plácido de Castro como o “responsável pela liberdade e pela integração do território do Acre à nação brasileira” [2] e pela fundação de “um povo e sua identidade: o Acre e os acreanos” [3]. Não há heróis sem grandes feitos e nem sem nobres virtudes. Os discursos histórico e literário consagraram vários feitos e virtudes a Plácido de Castro, não cabe aqui mencioná-los, muito menos caracterizá-los como falácias.
O importante aqui é dizer que o Plácido de Castro do discurso fundador não é aquele indivíduo histórico que veio para a Amazônia em busca de riqueza fácil em fins do século XIX, e que há cem anos amaldiçoou a terra que o vira morrer, negando a ela o sepultamento de seu corpo.
O Plácido de Castro tratado aqui é uma unidade discursiva, um sítio de significância que agrupa vários discursos e formam uma imagem ideal e desejada daquele homem histórico que foi contratado para liderar uma revolta armada contra o governo boliviano em Puerto Alonso (1902).
Portanto, o Plácido de Castro do discurso não é aquele que teve vida biológica. Esse é um lugar de interpretação, é uma vontade de verdade construída discursivamente e sustentada por relações de poder. Mas ele não passa de uma paisagem enunciativa que expressa a vontade de potência de seus interlocutores.
E o principal interlocutor desse discurso é o Estado, que ano após ano se preocupa em trazer à memória coletiva os “grandes feitos” desse personagem. Conseqüentemente, também é o Estado quem mais colhe com essa política: ganha a admiração e a passividade do povo. Ninguém seria capaz de se rebelar contra o herói, nem aqueles que se dizem herdeiro dele.
Aquilo que seria impossível ao Plácido de Castro real fazer, o imaginado faz. Nenhuma concepção sociológica admitiria que um indivíduo fosse responsável pelo surgimento de uma comunidade ou da identidade dela. Além do mais, como já foi visto, a idéia de comunidade enquanto coletividade que partilha algo em comum é questionada. Sem dizer que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2004, p. 13).
Teria o Plácido de Castro histórico “libertado” o Acre? Se for levado em conta que todos os Tratados Internacionais – da Bula Papal Intercoetera (1493) ao Tratado de Ayacucho (1867) – atestam que as terras que os brasileiros chamaram de Acre não pertenciam ao Brasil, se torna fácil identificar que o termo “libertador” foi ideologicamente marcado. Como pôde protagonizar a liberdade de algo que não pertencia ao seu país?
Outra pergunta que se faz é: que Acre o Plácido de Castro histórico teria libertado? O Acre Meridional ou o Setentrional? O Alto-Purus ou o Alto-Juruá? Teria sito as terras banhadas pelo rio Acre? Ou os mais de 152 mil KM2 de terras que compreendem o Acre atual?
Os documentos históricos são enfáticos: a “Revolução” liderada pelo gaúcho limitou-se ao Vale do Rio Acre: Xapuri, Brasiléia, Rio Branco e Porto Acre. Como diz TOCANTINS (2001, V. II, p.101): “E quando se diz rio Acre é o mesmo que falar no palco da revolução, porque foi sobre o seu dorso que se desenrolaram os fatos capitais desse movimento”.
A atuação de Plácido porém se fez sentir no leste acreano, nos limites com a Bolívia. No oeste, onde passei alguns anos de minha infância, na região lindeira com o Peru, as figuras de maior destaque foram a do Barão Chanceler e a de Taumaturgo de Azevedo, um dos oficiais-generais de maior destaque da sua geração (BARROS, 1993, p. 32).
O Vale do Juruá não conheceu a “revolução” de Plácido de Castro. Como pode ele ter sido o seu “libertador” dessa região? Ele nem se quer foi testemunha da anexação definitiva do Juruá ao Brasil, já que foi morto em agosto de 1908, e a assinatura do Tratado Brasil-Peru ocorre somente em setembro de 1909.
E o vale do Rio Acre, teria sido liberto por ele? O mais correto seria dizer que os soldados-seringueiros obtiveram importantes vitórias sobre os bolivianos nessa região. Mas a “guerra” não estava terminada. O Peru ainda entraria em cena e, além do mais, o presidente da Bolívia, o General Pando, havia organizado uma mega operação militar de libertação e veio pessoalmente à região obter a desforra.
O rumor da “coluna Pando” causou tanta apreensão ao governo brasileiro em relação ao desfecho da Questão do Acre e, particularmente, ao destino dos “revolucionários”, que o Ministro Barão de Rio Branco diligentemente enviou para o local uma expedição militar e tratou logo de assinar um “modus vivendi” com o país andino.
Em segundo lugar, as vitórias alcançadas pelos seringueiros sobre o exército boliviano em nada adiantariam, pois aquelas terras já tinham sido arrendadas para Bolivian Syndicate[4]. O Consórcio não aceitaria qualquer prejuízo com o Acre. Não assistiria a epopéia de “braços cruzados”. A intervenção militar internacional era certa, e contra ela o exercito acreano não teria vez.
Não havia dúvidas de que o negócio estava protegido por influentes forças políticas em Washington e o Governo Norte-Americano cedera, embora de modo velado, como sempre acontece em tais casos, em dar cobertura ao empreendimento cuja lista de incorporadores incluía os nomes de maior evidência nas finanças do país. (TOCANTINS, 2001, V.II, p. 65).
Historicamente, o gaúcho Plácido de Castro não anexou um palmo de terra se quer ao Brasil. Para melhor compreender essa afirmação, o processo de anexação do Acre ao Brasil será dividido em duas fases: a Fase Militar, conhecida como Revolução Acreana (1889-1903); e a Fase Diplomática (1903-1909). Na fase militar, nada tinha se resolvido concretamente. A questão ainda não tinha recebido um desfecho definitivo. Na fase militar o que se fez muito foi derramar “sangue” no altar de mamom.
Foi na Fase Diplomática que tudo se desenrolou. Foi nela que a habilidade do Barão de Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasil, entrou em cena. Havia três grandes problemas a serem resolvidos, dos quais a fase militar se mostrou impotente para fazê-lo: a) fazer o governo boliviano aceitar a presença brasileira na região; b) convencer o Sindicato Internacional a desistir do empreendimento comercial altamente lucrativo; c) fazer o Peru recuar em suas pretensões em relação ao Acre e parte do Amazonas.
Aquilo que para a história local foi uma dádiva do Herói Plácido de Castro, para Olavo Bilac, um dos maiores escritores do início do século XX, foi um legado do Ministro Rio Branco: “Paranhos do Rio Branco! Abençoado seja o teu cérebro, porque a tua inteligência restituiu ao Brasil os brasileiros que estavam sem pátria!” (apud TAVARES, 2001, p. 151). Tocantins (2001, V.II, p. 86) diz: “graças aos expedientes de Rio Branco, o Governo imperial desinteressou-se do assunto”. “Era difícil derrotar Rio Branco” (Idem, p. 517).
Em relação ao Bolivian Syndicate, foi pago uma indenização de 110 mil libras, fora a despesa dos advogados, pela quebra do contrato, e em 26 de fevereiro de 1903, foi assinado em Nova Iorque, “a escritura de renúncia” (TOCANTINS, V.II, 2001, p. 29).
Já a questão peruana foi mais árdua de ser resolvida e demorou nada menos que seis anos de negociação. Ao final, um Tratado foi assinado e datado em 8 de setembro de 1909, concedendo ao Peru quase 40 mil KM2 de terras dos 251 mil que pleiteava.
1909 marca o fim do drama que a História armou em torno de uma linha [...] O Acre nasce dessa linha oscilante que certo mapa, seguindo a sugestão colorida da natureza, traduziu, num simples e hipotético traço, o espírito e o conteúdo da história acreana: o drama da linha verde. Rio Branco transformou-a de linha singela no triângulo verde que é o mais difícil e belo trabalho diplomático do Deus Terminus das fronteiras nacionais (idem, p. 530).
A discussão aqui não é estabelecer quem de fato foi o responsável pela anexação do Acre ao Brasil, mas mostrar que muitos olhares são possíveis, que várias vontades de verdade estão em jogo, e que o real só ganha sentido no discurso. Dessa forma: “o que nós chamamos inicialmente história não é senão um relato” (DE CERTEAU, 1982, p. 281).
Mas não se pode negar que durante a passagem de Barão de Rio Branco pelo Ministério das Relações Exteriores, o Brasil aumentou suas fronteiras em pelo menos 32%, o que significa 900 mil Km2. Essa ampliação territorial foi fruto da negociação dele com os consulados da Bolívia (1903), Equador (1904), Venezuela (1905), Holanda (1906), Colômbia (1907), Peru (1909) e Uruguai (1909). Sem dizer que já havia solucionado a Questão do Amapá, com a França e a Questão das Missões, com a Argentina.
Para encerrar esse tópico, uma última pergunta: por que a glória deve ser dada exclusivamente ao coronel Plácido de Castro, como se ele fosse o responsável pela anexação do Acre ao Brasil? O que teria sido o intento de Plácido de Castro sem o apoio do governo amazonense? Por que a glória não é estendida, em igual proporção, a José de Carvalho, a Galvez, aos membros da Expedição dos Poetas, aos líderes da “revolução” do Juruá, ou a todos os seringueiros que fizeram a “revolução”? Teriam eles derramado menos sangue boliviano que o herói? E o barão de Rio Branco, por que ele também não foi consagrado como herói do Acre?
Eis aí mais uma pérola do discurso fundador do Acre: Plácido de Castro - não o histórico, mas aquele herói do discurso - foi o responsável por tudo. Como na imagem abaixo, em que ele aparece sozinho cavalgando triunfante, o herói é sempre aquele que dispensa a ajuda de outros para sagrar-se vitorioso. O povo do Acre é feito de heróis, mas Plácido de Castro foi construído como o modelo exemplar deles.
Plácido de Castro: “Centenário de Morte”.
Edurdo Carneiro em mais um reflexão inconclusa.
.............................................................................................. [1] Foi dessa forma que Plácido de Castro foi qualificado ao ser inscrito “no Livro dos heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia” (1° Parágrafo da Lei Federal n° 10.440, de 02 de maio de 2002). [2] Trecho do convite do Governo do Estado alusivo às programações da comemoração do centenário da morte de Plácido de Castro. Ver página 91. [3] Idem. [4] A assinatura ocorreu no dia 14 de julho de 1901 e aprovado no Congresso Nacional Boliviano em 17 de dezembro 1901 (cf. TOCANTINS, 2001, V. II, p. 45).
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