terça-feira, 18 de novembro de 2008

Algumas Citações e Resenhas de "O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência" de Paul Gilroy.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid K. Moreira. São Paulo: ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, 421p.
- O atlântico negro é um conceito, como conceito é histórico. O foco principal é a fluidez, o não-absoluto, o “balanço do mar”. Como conceito não serve para estudar a escravidão indígena. A idéia de voltar às origens está ligada à concepção de identidade absoluta. - A dupla consciência é a consciência da nossa consciência. Reflexões heurísticas, conclusões temporários. CAP. 1 – O ATLÂNTICO NEGRO COMO CONTRACULTURA DA MODERNIDADE (p. 33) “... o vento que traz o degelo está soprando; nós mesmos, os sem-lar, constituímos uma força que rompe o gelo...” Nietzsche “Sobre a noção de modernidade. É uma questão desconcertante, Toda era não seria ‘moderna’ em relação à precedente? Parece que pelo menos um dos componentes de ‘nossa’ modernidade é a expansão da consciência que temos dela. A consciência de nossa consciência (a dupla, o segundo grau) é nossa fonte de força e nosso tormento”. Glissant. “Esforçar-se por ser ao mesmo tempo europeu e negro requer algumas formas específicas de dupla consciência” p. 33. “... os grupos têm interessado a idéia de nacionalismo cultural, a concepções superintegradas de cultura que apresentam as diferenças étnicas como uma ruptura absoluta nas histórias e experiências do povo ‘negro’ e do povo ‘banco’. Contra essa escolha se impõe outra opção mais difícil: a teorização sobre crioulização e hibridez” p. 35.
“Essas idéias sobe nacionalidade, etnia, autenticidade e integridade cultural são fenômenos tipicamente modernos” p. 34. - Pela teoria tradicional, o processo de mutação cultural é chamado de impureza e poluição. “Este livro aborda... as formas culturais estereofônicas, bilíngües ou bifocais originadas pelos – mais não mais propriedade exclusiva dos – negros dispersos nas estruturas de sentimento, produção, comunicação e memória, a que tenho chamado heuristicamente mundo atlântico negro” p. 35. “... este capítulo busca explorar as relações especiais entre ‘raça’, cultura, nacionalidade e etnia que possuem relevância nas histórias e culturas políticas dos cidadãos negros do Reino Unido” p. 36.
“Decidi-me pela imagem de navios em movimento pelos espaços entre a Europa, América, África e o Caribe como um símbolo organizador central para este empreendimento e como meu ponto de partida. A imagem do navio – um sistema vivo, microcultural e micropolítico em movimento – é particularmente importante por razões históricas e teóricas que espero se tornem mais claras a seguir”. P. 38. “... um foco nacionalista antitético à estrutura rizomórfica e fractal da formação transcultural e internacional a que chamo o Atlântico Negro” p. 38. ESTUDOS CULTURAIS EM PRETO-E-BRANCO - A mistura produz o imprevisível. Estuda o fato em seu lugar de emergência. - A identidade nacional é firmada com o apagamento dos rastros-resíduos dos que convive sem aparecer. É a identidade institucionalizada. - Pode ser negro, mas não pertencer ao universo negro. Produz-se uma identidade – ela é a favor de quem e contra quem?
- Territorialidade: “eu fui... já não sou mais”. Perca do território. - O autor é estrangeiro. - ESTUDOS CULTURAIS: principais problemas são o etnocentrismo e o nacionalismo. - O projeto da nação brasileira já estava sendo construído quando na colônia, as elites silenciava a existência dos negros. A ilusão da nação igual.
- As unidades políticas, culturais e econômicas não coincidem mais com os limites territoriais. “Quero desenvolver a sugestão de que os historiadores culturais poderiam assumir o Atlântico como uma unidade de análise única e complexa em suas discussões do mundo moderno e utilizá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e intercultural” p. 57.
“Deve-se enfatizar que os navios eram os meios vivos pelos quais se uniam os pontos naquele mundo atlântico. Eles eram elementos móveis que representavam os espaços de mudanças entre os lugares fixos que lês conectavam” p. 60. “O navio é o primeiro dos cronótopos modernos pressupostos por minhas tentativas de repensar a modernidade por meio da história do Atlântico negro e da diáspora africana no hemisfério ocidental” p. 61.
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RESENHAS
Gilroy, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. Eufrázia Cristina Menezes Santos - Professora da Universidade Federal de Sergipe e doutoranda do Departamento de Antropologia – USP No Prefácio à lª edição de The Black Atlantic (1993), Paul Gilroy aspira que a leitura do seu livro represente uma viagem marítima pelo mundo do Atlântico Negro. Este último termo refere-se metaforicamente às estruturas transnacionais criadas na modernidade que se desenvolveram e deram origem a um sistema de comunicações globais marcado por fluxos e trocas culturais. A formação dessa rede possibilitou às populações negras durante a diáspora africana formarem uma cultura que não pode ser identificada exclusivamente como caribenha, africana, americana, ou britânica, mas todas elas ao mesmo tempo. Trata-se da cultura do Atlântico Negro, uma cultura que pelo seu caráter híbrido não se encontra circunscrita às fronteiras étnicas ou nacionais. Ao longo de 419 páginas o autor repensa a modernidade por meio da história do Atlântico Negro e da diáspora africana no hemisfério ocidental, conduzindo-nos de maneira instigante por rotas de difícil navegação.
A década de 1990 foi rica em discussões de temas como globalização, cultura, identidade, nacionalismo, hibridismo, multiculturalismo. O livro do sociólogo inglês Paul Gilroy, cuja primeira edição em língua inglesa data de 1993, insere-se nesse debate contemporâneo repudiando as perigosas obsessões com a pureza racial, posicionando-se contra as representações do corpo humano como repositório fundamental da ordem da verdade racial. Seu projeto político e acadêmico renova críticas à idéia de raça e preve sua morte como princípio de cálculo político e moral. O livro questiona a definição de cultural nacional introduzida pelo o absolutismo étnico e busca explorar as relações entre raça, nação, nacionalidade e etnia, para colocar em xeque o mito da identidade étnica e da unidade nacional. As discussões sobre cultura e identidade, apresentadas, não acrescentam nada de novo em relação à produção intelectual já existente sobre estes temas. O caráter de novidade está no uso político que faz desse referencial no seu trabalho, para pensar em novas bases a cultura e a(s) identidade(s) negra(s), enfatizando, sobretudo, o problema e os limites da identidade étnica e racial.
No centro de sua análise encontra-se a noção de diáspora, que o autor importou de inconfessadas fontes judaicas para a política e a história negra. No seu quadro de análise, ela não representa uma forma de dispersão catastrófica, mas um processo que redefine a mecânica cultural e histórica do pertencimento. Para Gilroy a diáspora rompe a seqüência dos laços explicativos entre lugar, posição e consciência, conseqüentemente rompe também com o poder do território para determinar a identidade. O autor repudia a idéia de uma identidade enraizada, supostamente autêntica, natural e estável, veiculada pelo pensamento nacionalista negro nos anos 60. Para ele a rede de comunicação transnacional criou uma nova topografia de lealdade e identidade que desconsidera as estruturas e os pressupostos do Estado-nação e redefine as formas de ligação e identificação no tempo e no espaço. O modelo do Atlântico Negro remete ao sentimento de desterritorialização da cultura em oposição à idéia de uma cultura territorial fechada e codificada no corpo. "Sob a chave da diáspora nós poderemos então ver não a raça, e sim formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem" (: 25).
As relações estabelecidas em decorrência da diáspora favorecem a formação de um circuito comunicativo que extrapola as fronteiras étnicas do Estado-nação, permitindo às populações dispersas conversar, interagir e efetuar trocas culturais. A referência ao mar e à vida marítima, presente no título e ao longo do livro, tem um sentido poético, mas, sobretudo heurístico. O mar indica idéia de contaminação, mistura, movimento, coerente com a perspectiva de análise adotada que situa o mundo do Atlântico Negro em uma rede entrelaçada entre o local e o global. No seu esquema interpretativo o autor elege o navio como a principal unidade de análise, sua importância histórica e teórica decorre do fato do mesmo ter funcionado como o principal canal de comunicação pan-africana. O navio representa "um sistema vivo, microcultural e micropolítico em movimento que coloca em circulação, idéias, ativistas, artefatos culturais e políticos" (: 38). Para Gilroy, a análise da história política e cultural negra no Ocidente requer uma maior atenção à complexa mistura entre idéias e sistemas filosóficos e culturais europeus e africanos. A mistura não deve ser interpretada como perda de pureza, e sim como um princípio de crescimento que ajudou a formar o mundo moderno. É dele a definição do seu livro como um ensaio sobre a inevitável hibridez e mistura de idéias (: 30).
A análise da cultura do Atlântico Negro é particularmente valiosa, entre outros aspectos, por dar visibilidade a uma face da história cultural obscurecida pelo véu do absolutismo étnico: a relação dos negros com a modernidade ocidental. Este constitui, sem dúvida, um dos principais pontos de análise apresentado. Segundo Gilroy, durante a diáspora, os negros criaram um corpo único de reflexão sobre a modernidade e seus dissabores que continua presente nas lutas culturais e políticas de seus descendentes. No entanto, o racismo moderno não reconheceu os negros como pessoas com capacidades cognitivas, ou mesmo com uma história intelectual. Um dos aspectos mais explorados no livro é o reconhecimento da duplicidade como sinal diacrítico da história intelectual do Atlântico Negro – integra o ocidente sem fazer parte completamente dele.
As proposições apresentadas pelo o autor se contrapõem às premissas do racismo científico que confinou o negro à categoria intermediária entre o animal e o homem. Indiretamente, elas se contrapõem também aos escritos filosóficos que se mostraram céticos quanto à capacidade cognitiva dos negros. O livro aponta a necessidade de uma avaliação crítica do racismo e anti-semitismo presentes na obra de filósofos iluministas como Kant e Voltaire. Merece ser aqui enfatizada a proposta apresentada por Gilroy de uma releitura da dialética do senhor e do escravo, na qual se enraíza a alegoria hegeliana da consciência e da liberdade. Para ele, as formulações de Hegel podem ser usadas para iniciar uma análise que veja a estreita associação entre a modernidade e a escravidão como uma questão conceitual chave. Igualmente, um retorno à explicação do conflito e das formas de dependência produzidas na relação entre o senhor e o escravo põe em evidência as questões de brutalidade e terror quase sempre ignoradas pelas narrativas da modernidade. Gilroy toma como pressuposto a idéia de que "o terror racial não é meramente compatível com a racionalidade ocidental, mas, voluntariamente cúmplice dela" (: 127).
O projeto do autor desencadeia uma severa crítica aos estudos culturais ingleses e afro-americanos marcados por perspectivas etnocêntrica e nacionalista. Promove igualmente uma avaliação crítica do uso das noções de etnia no interior destes estudos, ao mesmo tempo em que se opõe à falsa idéia de que a cultura sempre flui em padrões correspondentes à fronteira do Estado-nação. Do ponto de vista do autor, a relação entre nacionalidade e etnia foi apoiada retoricamente pelo inclusivismo cultural que enfatiza o sentido absoluto da diferença étnica entre os indivíduos em detrimento das suas experiências social e histórica.
Ao longo do livro, em especial, os capítulos 4 e 5, Gilroy utiliza a vida e os escritos de intelectuais negros como W. E. B. Du Bois, Richard Wright, Martin Delany, Frederick Douglas para desenvolver sua discussão sobre a modernidade e para elaborar um relato intercultural e antietnocêntrico da História e da cultura política negra modernas. Os textos elaborados por esses autores, com base em suas experiências de viagem e exílio, "expressam o poder de uma tradição de escrita na qual a autobiografia se torna um ato ou processo de simultânea autocriação e auto-emancipação" (: 151). Muitos desses autores utilizaram a memória da experiência escrava como um instrumento adicional, suplementar para construir uma interpretação distinta da modernidade. A inserção dos intelectuais negros no mundo moderno é vista como ambivalente, marcada por uma tensão entre ser produto da civilização ocidental e possuir uma identidade racial, profundamente condicionada e organicamente gerada por essa civilização. Para Gilroy é preciso atentar para o fato de que as críticas dos intelectuais negros à modernidade também podem ser, em alguns sentidos, importantes à afirmação dessa mesma modernidade. A compreensão desse quadro é prejudicada, quase sempre, por posturas que insistem em separar as formas culturais particulares a ambos grupos em alguma tipologia étnica, perdendo a oportunidade de discutir o seu complexo entrelaçamento.
A teoria da dupla consciência elaborada por Du Bois constitui um dos principais temas abordados pelo autor, a partir do qual, discute a construção e a plasticidade das identidades negras. O sujeito negro de Du Bois vive uma certa dualidade, encontra-se dividido entre as afirmações de particularidade racial e o apelo aos universais modernos que transcendem a raça. No seu quadro de análise a dupla consciência emerge das experiências de deslocamento e reterritorialização das populações negras, que acabam redefinindo o sentimento de pertença. Ele compartilha ao lado de outros escritores negros "a percepção de que o mundo moderno estava fragmentado ao longo de eixos constituídos pelo conflito racial e poderia acomodar modos de vida social assíncronos e heterogêneos em estreita proximidade" (: 368). Com esse conceito, Du Bois objetiva dar às experiências pós-escravidão vivenciadas pelos negros ocidentais uma significação mundial. Essas formulações casam perfeitamente com a preocupação de Gilroy na formação de uma transcultura negra que possa relacionar, combinar e unir as experiências e os interesses dos negros em várias partes do mundo.
O livro traz para o primeiro plano a cultura vernacular negra, sublinhando a importância dos elementos antidiscursivos e extralingüísticos dos atos comunicativos definidos pela instituição da escravidão. As expressões artísticas que emergiram da cultura dos escravos encontraram na música e na dança um substituto para as liberdades políticas formais que lhes eram negadas, "a arte se tornou a espinha dorsal das culturas políticas dos escravos e da sua história cultural" (: 129), e até hoje representa uma importante aliada nos processos de luta rumo à emancipação, à cidadania e à autonomia negra. O poder da música negra para o desenvolvimento das lutas políticas das comunidades negras da diáspora exige atenção aos seus atributos formais e à sua base moral distintiva: "Ela é ao mesmo tempo, produção e expressão dessa transvalorização de todos os valores precipitada pela história do terror racial no Novo Mundo" (: 94). O acesso restrito dos escravos à alfabetização fez crescer o poder da música em proporção inversa ao poder expressivo da língua, seu refinamento tem proporcionado um mecanismo de comunicação que não se limita ao poder das palavras faladas ou escritas. A música tem exercido um papel fundamental na reprodução da cultura do Atlântico Negro e na conexão entre as diferentes comunidades da diáspora.
Gilroy sublinha as formas nas quais as culturas vernaculares têm viajado. A cultura musical e as histórias de deslocamento, empréstimos, transformação e reinscrição contínua que lhe são características, remete à complexidade sincrética das culturas expressivas negras. Ela fornece o melhor exemplo do tráfego bilateral que vem se processando historicamente entre as formas culturais africanas e as culturas políticas dos negros da diáspora. A história de hibridação e mesclagem desaponta o desejo de pureza racial acalentado pelo afrocentrismo e pelo eurocentrismo. A história do Atlântico Negro nos ensina que a reprodução das tradições culturais não pode ser interpretada como a transmissão pura e simples de uma essência fixa ao longo do tempo, ela se dá nas rupturas e interrupções sugerindo que "a invocação da tradição pode ser, em si mesma, uma resposta distinta, porém oculta, ao fluxo desestabilizante do mundo contemporâneo" (: 208).
Ao término dessa viagem intelectual por O Atlântico Negro, o leitor brasileiro sente a ausência de uma abordagem da cultura da diáspora que englobe as experiências das comunidades negras do "Atlântico Sul Negro". Essa ausência torna-se mais significativa se levarmos em conta que o livro ao privilegiar as rotas e os fluxos sugere maneiras importantes de pensar regionalmente e translocalmente. O estilo de análise de Gilroy não se limita a estabelecer oposições, mas tenta demonstrar as vantagens de uma abordagem que seja capaz de estabelecer relações, procurando criticar os efeitos perniciosos do pensamento dualista binário no qual um elemento do par é dominado por outro – racional/irracional, branco/preto. As rotas abertas por esta obra de caráter seminal certamente darão origem a futuras investigações que possam promover outras viagens com novos roteiros rumo à história descomunal da cultura atlântica negra.
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Hebe Maria Mattos Paulo Gilroy, O Atlântico Negro - Modernidade e Dupla Consciência. Rio de Janeiro, Editora 34/UCAM - Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2002, 427p. Em boa hora se apresenta ao público brasileiro a versão em português de O Atlântico Negro, de Paul Gilroy. Sua perspectiva, ao mesmo tempo antiessencialista e afirmativa da dinâmica das culturas e identidades negras no Atlântico, abre perspectivas inovadoras ao debate, atualmente em curso, sobre a questão da adoção de políticas de discriminação positiva para o combate ao racismo no Brasil.
Trata-se de texto denso e complexo, construído a partir de múltiplas referências a diversos aspectos das culturas negras - da literatura à música - no mundo de língua inglesa, o que o torna, por vezes, de leitura difícil. Por outro lado, seu argumento central tem enorme apelo e poder de sedução, desde que se organiza a partir da utilização de alguns conceitos-chave que se mostram extremamente esclarecedores para a compreensão dos processos de racialização no Ocidente, bem como de suas implicações políticas e culturais.
O primeiro deles é a noção de diáspora que se concretiza de forma bela no título do livro - o Atlântico Negro. Para Gilroy, as culturas e identidades negras são indissociáveis da experiência da escravidão moderna e de sua herança racializada espalhada pelo Atlântico. É na memória da escravidão e na experiência do racismo e do terror racial que muitas vezes lhe sucedeu que se funda politicamente a identidade cultural dos negros no Ocidente.
Segundo Gilroy, a discussão contemporânea sobre a diáspora negra teria surgido como uma resposta direta "aos ganhos trans-locais advindos do movimento Black Power durante a Guerra Fria" (p. 17), mas teria rapidamente evoluído para uma contestação das formas essencialistas de pensar as culturas e identidade negras no mundo ocidental. Gilroy tenta levá-la mais longe, abordando radicalmente a identidade negra como construção política e histórica marcada pelas trocas culturais através do Atlântico, na qual a questão das origens interessa menos que as experiências de desenraizamento, deslocamento e criação cultural. Estas experiências se produziriam desde o tráfico negreiro, trauma original, até as mais diversas experiências de encantamento e estranhamento em viagens e exílios entre América, Europa e África. Chega-se, aí, no segundo daqueles conceitos básicos e esclarecedores, a relação entre modernidade e dupla consciência que compõe o subtítulo do livro, propondo abordar o pensamento e a arte negros no Ocidente como contracultura da modernidade.
Acompanhando a biografia e a produção literária de escritores negros norte-americanos, precursores ou ícones do nacionalismo negro e do pan-africanismo, como Frederick Douglas, Martin Delany, Du Bois e Ricard Wright, Gilroy vai acentuar a importância, para a construção do pensamento de cada um deles, da associação de uma vivência pessoal da escravidão ou do terror racial nos Estados Unidos, com a formação intelectual iluminista e o contato direto com a Europa em diferentes experiências de viagem. As relações de Frederick Douglas com o cristianismo e os radicalismos ingleses e escoceses, de Martin Delany com a medicina racializada do século XIX, de Du Bois com o culturalismo alemão, de Richard Wright com o existencialismo francês são consideradas dimensões constitutivas para compreensão de seus textos. Em uma frase provocativa, Gilroy irá afirmar
Marcada por suas origens européias, a cultura política negra moderna sempre esteve mais interessada na relação de identidade com as raízes e o enraizamento do que em ver a identidade como um processo de movimento e mediação [...]. (p. 65)
Resumindo graficamente a radicalidade desta perspectiva, África e Europa aparecem imbricadas e indistintas no mapa que ilustra a capa do livro.
O autor escreve de um ponto de vista a um mesmo tempo negro e inglês e, por isso, escolhe como interlocutores preferenciais - tentando marcar-lhes as limitações - o nacionalismo cultural britânico e o absolutismo étnico do pensamento africano-americano. Um de seus principais esforços, especialmente no primeiro ensaio do livro, está em mostrar as múltiplas interconexões das experiências da classe trabalhadora inglesa e dos negros americanos, quando tomadas em perspectiva atlântica.
Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas [da cultura], quero desenvolver a sugestão de que os historiadores culturais poderiam assumir o Atlântico como uma unidade de análise única e complexa em suas discussões do mundo moderno e utilizá-la para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e intercultural. (p. 57)
Assumindo radicalmente a perspectiva de Linebaugh em seu famoso e polêmico artigo "Atlantic Mountains" (traduzido no Brasil como "Todas as Montanhas Atlânticas Estremeceram", Revista Brasileira de História, nº 6, 1983), Gilroy considera que "o navio [continua] a ser talvez o mais importante canal de comunicação pan-africana antes do aparecimento do disco long-play". (p. 54)
De uma perspectiva mais crítica, não se pode deixar de considerar que o livro se ressente de uma perspectiva demasiadamente definida pelo mundo de língua inglesa, europeu e americano. Mesmo a África negra anglofônica praticamente não é considerada, de modo que as dificuldades óbvias de construção de uma identidade negra no Continente africano, fora dos contextos de lutas anticoloniais, não chegam a ser exploradas. As trocas culturais consideradas no livro, fora do tráfico negreiro original, consideram pouco a margem africana do Atlântico, a não ser quando falam da Libéria ou da África do Sul.
Isto se dá, por outro lado, porque o processo de construção de identidades e culturas negras nasce efetivamente na América, como resistência à escravidão e ao terror racial, para daí voltar a circular no Atlântico, europeu ou africano. Gilroy está absolutamente correto, portanto, quando associa as identidades e culturas negras à experiência e à memória da escravidão na diáspora africana no Novo Mundo e aos processos de racialização dela decorrentes. Em função da perspectiva demasiadamente inglesa, entretanto, este processo de racialização aparece de forma um tanto monolítica e pouco problematizada. A escravidão moderna é definida por ele, de forma absoluta, como "escravidão racial", o que não é facilmente demonstrável do ponto de vista empírico antes do século XVIII. Os processos de racialização do negro e do branco são bem posteriores às condições históricas européias e africanas que deram origem ao tráfico atlântico de escravos no século XVI.
Por outro lado, o livro de Gilroy concentra-se corretamente em processos culturais que se desenvolveram a partir da segunda metade do século XVIII, quando a escravidão moderna efetivamente se vê crescentemente explicada a partir de processos raciais. Estes processos, entretanto, atingem diferentemente as muitas áreas do mundo atlântico por eles conectadas. Neste sentido, uma abordagem da escravidão no Império português e de sua continuidade no novo Estado brasileiro oitocentista permitiriam uma análise mais nuançada e complexa dos processos de racialização e de suas implicações políticas e identitárias. Por outro lado, a abordagem proposta no livro abre novas possibilidades para o estudo das culturas e identidades negras no Brasil. De fato, apenas uma perspectiva atlântica pode fazer emergir, por exemplo, todas as implicações políticas e culturais do esforço de intelectuais negros, no Brasil oitocentista, em desracializar as justificativas para a continuidade da escravidão, do qual Antônio Pereira Rebouças é um exemplo recentemente visitado, mas de forma nenhuma isolado.1
O livro de Paul Gilroy organiza-se em seis ensaios que se estruturam procurando apreender o Atlântico Negro como contracultura da modernidade (título do primeiro capítulo), a partir dos empréstimos teóricos e hibridismos culturais presentes tanto na produção literária de intelectuais negros norte-americanos (Martin Delany, Frederick Douglas, Du Bois, Richard Wright), como na música negra dita africano-americana nos Estados Unidos (Jubillee Singers, Jimmy Hendrix e o hip-hop).
Os capítulos sobre a música negra, talvez o mais consistente indicador da presença da matriz cultural africana na cultura negra no Ocidente, enfatizam - sem negar a africanidade - as trocas com os estilos, o público e a música européia, abordando as viagens pioneiras do Jubilee Singers à Europa, bem como a experiência visceralmente moderna, culturalmente transnacional e híbrida de músicos como Jimmy Hendrix e de estilos como o hip-hop. Com esta argumentação o autor procura romper a polarização entre as teorias essencialistas e antiessencialista da identidade negra, buscando enfatizar a historicidade desta construção cultural e seu sentido eminentemente político.
Mesmo propondo, com vigor, uma discussão crítica do "africentrismo" e dos essencialismos culturais, raciais ou étnicos, para Gilroy o Atlântico negro se apresenta como construção identitária mutante, porém definitiva, no contexto do mundo ocidental. Em suas palavras, "um mesmo mutável" (p. 29). Não por acaso, o capítulo final retoma a idéia de diáspora e estabelece conexões com fontes da cultura judaica, procurando explorar as muitas analogias, em geral pouco trabalhadas, entre o sionismo e o nacionalismo negro.
A sofisticação teórica associada a um postura militante não deixam de conferir uma certa ambigüidade, mas também um incontestável charme ao resultado final do livro. Pensar as identidades e culturas negras entendidas sob a perspectiva da diáspora permite a Gilroy não apenas entender a historicidade e multiplicidade das configurações culturais negras, mas também, no limite, tentar superar a noção de raça como estruturadora dessas culturas e identidades. As identidades negras da diáspora, culturalmente híbridas e dinâmicas, se constroem não apenas a partir da memória do trauma original da escravidão e da vivência posterior da violência racial e do racismo, mas também a partir de uma experiência radical de desenraizamento e constante metamorfose cultural, estrutural à experiência da modernidade. Esta perspectiva se acentua, em especial, no prefácio à edição brasileira, em que mais explicitamente o autor assume o quanto a noção de Atlântico negro tem a ganhar incorporando o Atlântico Sul e suas muitas configurações culturais, expandindo-se muito além da camisa de força do modelo norte-americano do "africano-americano". Em suas próprias palavras, no prefácio à edição brasileira:
Sugiro que devemos reconsiderar as possibilidades de escrever relatos não-centrados na Europa sobre como as culturas dissidentes da modernidade do Atlântico negro têm desenvolvido e modificado este mundo fragmentado, contribuindo amplamente para a saúde de nosso planeta e para suas aspirações democráticas. Este trabalho corresponde às aflições da geração da Guerra Fria, que incluem a atração pelo passado, a adesão ética e política à idéia de celebrar a experiência sublime da escravidão e uma disposição geralmente favorável diante de movimentos sociais que desafiem o sistema numa insurgência revolucionária que complemente, amplie e, então, repudie um iluminismo europeu incompleto e codificado racialmente. (p. 16) Nota 1. Cf. Keila Grinberg. O Fiador dos Brasileiros. Direito Civil, Escravidão e Cidadania no Tempo de Antônio Pereira Rebouças (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, no prelo. Originalmente tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, 2000) e Hebe Maria Mattos, Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2000).
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Paulo da Luz Moreira
O Atlântico Negro tem como razão primordial, nas palavras do autor, ver “os negros percebidos como agentes, como pessoas com capacidades cognitivas e mesmo com uma história intelectual – atributos negados pelo racismo moderno.”(GILROY, Paul, 2001, p.40).
Entretanto, percebe-se no livro duas outras aspirações principais: repudiar as noções de pureza racial que ainda circulam dentro dos movimentos políticos negros e propor alternativas ao que o autor chama de “clausuras das categorias com as quais conduzimos nossas vidas políticas.” (GILROY, Paul, 2001, p.30).
Gilroy busca chegar a esses objetivos aprofundando e consolidando um pensamento crítico sobre a condição negra que foge das armadilhas do essencialismo e do relativismo, defendendo que nos libertemos das amarras do essencialismo racial, sem com isso negar à categoria de raça sua validade como construção social e cultural e instrumento de luta por igualdade.
Na prática isso implica em confrontar posturas comuns entre pensadores da condição negra e, nesse sentido, Gilroy argumenta de modo convincente contra o discurso de inspiração nacionalista e romântica que tem a África como origem de uma cultura negra pura, mostrando que as culturas negras na África e na diáspora nunca viveram hermeticamente fechadas em si mesmas e nem são grupos homogêneos sem divisões internas de gênero e classe.
Ao mesmo tempo, Gilroy rejeita categoricamente a ênfase desmedida na textualidade que se torna um meio de esvaziar o problema da ação humana, um meio de especificar a morte (por fragmentação) do sujeito e, na mesma manobra, entronizar o crítico literário como senhor do domínio da comunicação humana criativa. (GILROY, Paul, 2001, p.166) Como alternativa ao essencialismo e ao relativismo, Gilroy propõe um modo transnacional de refletir sobre a experiência negra no mundo a partir da constatação de que as comunidades negras, dos dois lados do Atlântico, estiveram em intenso intercâmbio desde os séculos XVIII e XIX, e não apenas por causa do tráfico negreiro – Gilroy lembra que o piloto de Colombo era negro e que um quarto da marinha inglesa era composta de africanos no final do século XVIII.
Gente, mercadoria e cultura nas mais diversas formas (música, culinária, literatura) transitaram intensamente de um lado do Atlântico para o outro, nos dois sentidos, num tráfego intenso que mudou, mas não acabou com o fim da escravidão. A permanência dos laços criados pela colonização nas relações pós-coloniais (entre elas as migrações do terceiro para o primeiro mundo, chamadas por ele de “segunda” diáspora) perpetuou o Atlântico Negro durante todo o século XX, ainda que pontos de vista preocupados primordialmente com a questão da identidade nacional tendam a ignorá-lo.
O nacionalismo em geral é, aliás, um dos alvos principais de Gilroy. As perspectivas que confinam os estudos literários em departamentos rigidamente separados são vigorosamente contestadas já que “nem as estruturas políticas nem as estruturas econômicas de dominação coincidem mais com as fronteiras nacionais”. Observações como esta me parecem particularmente relevantes no contexto da crítica norte-americana e européia (onde estão os interlocutores implícitos de Gilroy), mas não deveriam ser novidade para quem vive em um país de terceiro mundo tutelado pelo FMI. Aí está um indício da grande limitação desse livro, que requer do leitor brasileiro uma leitura cum granus salis.
Nos capítulos 3, 4 e 5, fica bastante claro que Gilroy, chefe do departamento de Black Studies de Yale, fala diretamente para os seus pares nos centros de saber do hemisfério norte. Nesses capítulos, Gilroy denuncia as limitações e mistificações que foram produzidas para sustentar a visão de que as obras de W.E.B Du Bois e Richard Wright e a música dos Spirituals eram expressões típicas e exclusivas da cultura negra estadounidense, ignorando as importantes conexões internacionais que as definiram. Os Spirituals são apenas um entre vários exemplos derivados da música popular no livro uma vez que, para Gilroy, a música revela de forma clara os processos de livre apropriação e recombinação que configuram a cultura negra mundial: (...) a música e seus rituais podem ser utilizados para criar um modelo no qual a identidade não pode ser entendida nem como uma essência fixa, nem como uma construção vaga e extremamente contingente a ser reinventada pela vontade e pelo capricho de estetas, simbolistas e apreciadores de jogos de linguagem (GILROY, Paul, 2001, p.209).
Mas é justamente quando o assunto é música que a mais séria deficiência desse livro tão ambicioso aparece ainda mais claramente: não há sequer uma menção específica a músicos cubanos, brasileiros ou colombianos – apenas duas ou três vagas referências ao Brasil, principalmente quando Gilroy discute a música de Quincy Jones. Ou seja, ainda que o próprio Gilroy diga no prefácio à edição brasileira que “a história brasileira tem sido marginalizada mesmo nos melhores relatos sobre a política negra centrados na América do Norte e no Caribe” (GILROY, Paul, 2001, p.11). O Atlântico Negro apenas perpetua esse estado de coisas. Seria mais adequado chamar esse livro, portanto, de O Atlântico Negro do Norte, pois ele vem de um mundo que se pretende cosmopolita, mas só fala uma língua (o inglês), e só leva em conta o terceiro mundo quando quer passar as férias no Caribe.
Tendo isso em mente, o transnacionalismo de Gilroy tem que ser visto com uma certa reserva. Ainda que ele afirme que “com algumas nobres exceções, as explicações críticas da dinâmica da subordinação e da resistência negra têm sido obstinadamente monoculturais, nacionais e etnocêntricas.” (GILROY, Paul, 2001, p.170) e que, “a ponderação das similaridades e diferenças entre as culturas negras continua a ser uma preocupação urgente” (GILROY, Paul, 2001, p.171), o que se vê em O Atlântico Negro é a repetição de uma operação de apagamento de uma importante parcela do mundo negro que não consegue se fazer representar no circuito acadêmico entre Estados Unidos e Inglaterra. Palavras recorrentes no texto como “América” (GILROY, Paul, 2001, p.58, 182) e “Ocidente” (GILROY, Paul, 2001, p.83, 102) são exemplos dessa operação de apagamento; talvez pudessem ter sido traduzidas respectivamente como Estados Unidos e Europa ocidental/América anglo-saxônica para evitar equívocos do leitor de língua portuguesa.
É verdade que, devido à amplitude do tema, qualquer estudioso que se propusesse a escrever sobre todas as culturas negras dos dois lados do Atlântico encontraria dificuldades, mas o problema agrava-se quando se tenta impor conclusões gerais sobre as comunidades negras em geral e o resultado é uma teoria crítica necessariamente capenga, ou talvez seria melhor dizer, caolha. Não é surpresa, portanto, que a grande ausência no livro seja a relação assimétrica entre as culturas negras do centro e da periferia do capitalismo mundial. Não é fruto do acaso que Michael Jackson seja muitíssimo mais popular que Milton Nascimento ou Gilberto Gil em Moçambique e Angola, ou que a chegada de Cesária Évora ao mercado fonográfico brasileiro esteja ligada ao sucesso da cantora cabo-verdiana no primeiro mundo. Mesmo o acesso ao trabalho de intelectuais com raízes mais ou menos fortes no Caribe, como Stuart Hall e o próprio Paul Gilroy, depende da chancela que esses intelectuais têm nos meios acadêmicos do primeiro mundo.
Esses são momentos em que o véu cai e fica bastante claro que a globalização não supera, mas perpetua e até mesmo acentua as relações desiguais dos tempos coloniais. Mas há que abrir os olhos para ver. O Atlântico Negro, portanto, não cumpre sua promessa, o que não tira todo o mérito do livro. Um exemplo é a discussão da relação entre escravidão e modernidade. Gilroy afirma que “as realizações intelectuais e culturais das populações do Atlântico negro existem em parte dentro e nem sempre contra a narrativa gloriosa do iluminismo e seus princípios operacionais” (GILROY, Paul, 2001, p.113).
A escravidão não era um resquício arcaico que a modernidade combatia e Gilroy mostra que a escravidão e a visão do negro como fundamentalmente anti-racional foram parte do pensamento ocidental moderno desde do início.
Há muito que aprender com o livro de Gilroy, principalmente o seu trafegar no mar revolto entre modernidade e pós-modernidade sem se afogar no neoconservadorismo ou na paralisia relativista. Mas pensar um Atlântico Negro que realmente expresse sua riqueza e multiplicidade é um desafio não realizado, talvez maior que o trabalho de um só indivíduo. Que as lições com os erros e os acertos de Paul Gilroy sejam fecundas por aqui!
Referência bibliográfica: GILROY, Paul. (2001) O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos.

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