sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Parecer sobre o Processo de Tombamento do "Casarão" - Profº Dr. Gerson Albuquerque

Conselho Estadual de Patrimônio Histórico Processo de Tombamento do “Casarão”
Parecer e Voto do Relator Estimado Presidente!
Estimado(a)s Conselheiro(a)s! O presente processo trata do tombamento do “Casarão”, processo iniciado por manifestação da sociedade civil, no ano de 1999 e instruído pelo Processo de Tombamento n° 005/2000, do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Acre, vinculado à Fundação Estadual de Cultura “Elias Mansour”. Em 2001, o Ministério Público Estadual, concedeu e expediu liminar, impedindo que os herdeiros do imóvel continuassem a um processo de demolição do mesmo à revelia do Conselho de Patrimônio Histórico. Em 16 de agosto de 2007, em decorrência da aprovação do Projeto de Lei n° 12/2007, da Deputada Naluh Gouveia, pela Assembléia Legislativa do Estado do Acre, foi publicada no Diário Oficial do Estado do Acre, a Lei n° 1.917, de 3 de agosto de 2007, instituindo o “tombamento do Território Livre do Casarão”. Nos autos do processo encontram-se, ainda, farta documentação sobre a tramitação e os encaminhamentos adotados para sua consecução até a presente data.
Analisando os autos do presente processo, percebemos que uma década nos separa desde a data em que cento e trinta e duas pessoas de diferentes segmentos da sociedade acreana encaminharam a este Conselho Estadual um Manifesto reivindicando o Tombamento do Casarão, como Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Cultural do Estado do Acre. Isso reflete algo muito significativo e uma importante lição para todos nós que, hoje, fazemos parte do Conselho Estadual de Patrimônio Histórico. Reflete que quando o que está em jogo é a memória social um certo desinteresse reina senhor de tudo e, creio, aqui não cabe ficar procurando esse ou aquele elemento, fenômeno ou pessoa para responsabilizar ou para culpar. O fato é que uma década é muito tempo para a realidade social e histórica da Amazônia acreana.
Muito mais tempo, ainda, quando paramos para observar que foi exatamente nesses últimos dez anos que passamos a acompanhar a planejada intervenção estatal em determinadas áreas das cidades acreanas, visando não apenas seu remodelamento estético-urbanístico, mas a “revitalização”, o “resgate”, a “preservação” da memória histórica – a memória das classes dominantes - que passou a ser propagada como “a memória de todos: acreanos e não acreanos que vivem no Acre”. Propaganda essa que não poupou recursos públicos, distribuídos em fachadas de casas comerciais; seriados de televisão; construção, “revitalização” ou “reformas” de praças, mercados, palácios, áreas de lazer, chalés, entre outros, acompanhados por grandiosas inaugurações e uma incrível publicidade jornalística, panfletária, midiática. Paradoxalmente, toda essa produção discursiva sempre foi feita para “revelar” o Acre aos acreanos e, naturalmente, “melhorar sua auto-estima”.
Porém, o tombamento do imóvel em questão, não remete a um lugar da memória oficial - a “casa de Fontenelle de Castro” - como alguns inadvertidamente tentaram consignar em alguns dos primeiros documentos que culminaram com a elaboração do presente processo. Ao contrário disso, remete à memória social, aquela que não tem controle, aquela que está presente em diferentes pessoas de forma intensa e significativa em seus imaginários, em suas subjetividades, nas experiências que querem e gostam de lembrar e de re-significar.
Estudantes, professores, trabalhadores rurais e urbanos, desempregados, boêmios, poetas, músicos, teatrólogos, atores, sindicalistas, militantes políticos e uma infinidade de outros sujeitos sociais da cidade de Rio Branco criaram e recriaram o “Casarão”, a partir do início da década de 1980. O que confere sentido e legitimidade a todo o processo de tombamento desse lugar é esse contexto histórico e todo o acervo de memórias daí resultantes. Nesse acervo, deve-se ressaltar, prevalece a lembrança das muitas razões que por lá se expressavam; das idéias, palavras e pensamentos diferentes e divergentes; das longas conversas; das bebedeiras e festas sem o “toque de recolher” dos dias atuais; da experimentação; do não previsto; do imprevisível; do humano; das lutas pelo fim da censura e da ditadura; dos anseios pela construção de uma ordem justa, igualitária e democrática; lembrança da poesia, da música e do teatro alternativos, engajados e comprometidos com as causas amazônicas.
É essa a arquitetura que reveste de sentidos e de importância o tombamento do “Casarão” e isso nada tem a ver com a nostalgia dos dominantes de ontem e de hoje; com a preservação de uma casa de “coronel de barranco” ou com a trajetória de um “construtor de bueiros e cadeias públicas”. Tem a ver sim, com o fato de que aquele lugar deixou de ser apenas um imóvel de propriedade particular e se tornou em lugar de referência para uma multidão de sujeitos. Alguns são conhecidos nos meios artísticos, acadêmicos e políticos locais, mas a maioria nem sequer teríamos condições de enumerar ou indicar seus nomes nestas páginas, com suas memórias infinitas, inumeráveis. É em função desses grupos de mulheres e homens de Rio Branco ou que estiveram de passagem por essa parte das Amazônias que o tombamento do “Casarão” se justifica, com suas utopias ou suas metanarrativas, no dizer Néstor Canclini. Não é necessário ser historiador ou pesquisador da história da cidade de Rio Branco para saber que a casa dos Fontenelle não era o “Casarão”, alvo do presente processo de tombamento, até o início da década de 1980, quando iniciativas particulares, como as de Pedro Vicente Costa Sobrinho, seguido de Walter e Graça Halk, constituíram as bases para sua transformação em lugar de referência para outros pensares e outros fazeres ou, na feliz perspectiva de Milton Santos, em “sede da resistência, às vezes involuntária, da sociedade civil...”.
Sinto-me honrado em poder participar dessa discussão, na condição de relator deste processo de tombamento por várias razões: em meados dos anos 1970, minha geração, na saída das aulas de Educação Física, no Colégio Acreano, freqüentava o quintal da casa dos Fontenelle, para, com o dinheiro da passagem do ônibus, dar uns mergulhos nas águas nem sempre limpas da piscina que lá existia. Nos anos de estudante do ensino de 2° grau, no Ceseme – atual Cerb – já meio vinculado ao, então clandestino, Partido Comunista do Brasil, freqüentava a livraria do Professor Pedro Vicente onde adquiri meu primeiro exemplar do livro “10 dias que abalaram o mundo”, do John Reed. A partir de 1982 - até 1984 – trabalhei no “Casarão”, com o Walter e a Graça, com os quais tive meu primeiro emprego. Quando fui trabalhar no Poder Judiciário e estudar e depois lecionar na Ufac, continuei freqüentando o “Casarão”, como militante e amante da boêmia.
Essa é uma experiência individual, como tantas outras que tornaram possível a transformação da casa dos Fontenelle em “Casarão”, um espaço “laico-livre”, como afirma o professor Ruy Moreira, espaço que familiarizava seus freqüentadores com o “pensamento crítico e seus entrecruzamentos”. É esse o lugar de referência na memória social da cidade de Rio Branco que passou a reivindicar o tombamento do “Casarão”. Isso nada tem a ver com a razão única dos tempos atuais e nem com a memória dos vencedores com a qual nossos governantes têm profunda empatia (Benjamin, 1985). Esse “Casarão” do pensamento e do fazer múltiplo é um lugar produzido e iluminado de significados a partir da década de 1980: é isso o que confere sentido a este processo de tombamento.
Nessa direção, devemos ressaltar a importância de fazer com que um processo nascido sob tal perspectiva seja devolvido aos seus signatários que, após uma década, ainda esperam por resposta de um Conselho Estadual de Patrimônio Histórico que não pode ser confundido com uma confraria, principalmente, numa terra em que a sociedade civil parece ter sido “devorada” pela sociedade política que a tudo realiza, apresenta, põe as marcas, os signos e transforma em espetáculo.
Nunca é demais lembrarmos que “confraria”, segundo os dicionários de língua portuguesa, vem de “confradaria, de frade, do latim fratre, irmão”, com significados que variam de “associação com fins religiosos; irmandade; congregação; conjunto de pessoas da mesma categoria, com os mesmos interesses ou com a mesma profissão; sociedade; associação. A tradução para essa palavra com predominância em nosso meio social é a de um grupo fechado, que congrega interesses unificados, homogêneos, voltados para uma finalidade dada a priori, entre outros que, em minha opinião, deve despertar desinteresse, fundamentalmente, porque segrega e silencia outras vozes, gestos, culturas, sujeitos sociais.
Enfatizo isso porque temos acompanhado o quanto as intervenções governamentais e empresariais em projetos urbanísticos, arquitetônicos e paisagísticos no Acre, dos últimos dez anos, têm sido por demais reveladores do campo de atuação de um pensamento calcado em valores impositivos; inventando tradições homogeneizadoras; engradecendo certos fatos históricos marcados pela individualidade de uma espécie de super-homens; balizado no acontecimento como algo intocável, rígido, calcificado, petrificado ou mesmo sacralizado. Com isso elimina-se a reflexão – “retorno do pensamento sobre si mesmo, com vista a examinar mais profundamente uma idéia, uma situação, um problema; meditação; ponderação; prudência” – e enaltece-se a comemoração - “celebração; recordação; memória; lembrança; preceito em homenagem ou memória de pessoa ilustre ou de facto histórico importante”.
Penso que é isso o que está em questão no âmbito deste processo de tombamento: propiciar a reflexão ou, para irmos na essência da palavra, um “retorno do pensamento sobre si mesmo, com vista a examinar mais profundamente uma idéia, uma situação, um problema”. É esse o espírito que está presente no Manifesto pelo Tombamento do Casarão, como Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Cultural do Estado do Acre. No entanto, isso não é muito fácil de se concretizar quando as condições para tal retorno ao pensamento não estão dadas e, diria mesmo, estão sufocadas ou pulverizadas em uma espécie de pathos comemorativo que busca sempre homenagear a “memória de [uma] pessoa ilustre ou de facto histórico importante”.
Em significativa reflexão apresentada durante o “Congresso Internacional Patrimônio Histórico e Cidadania”, promovido pelo Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, no ano de 1991, Cássia Magaldi, destacou que os conselhos de patrimônio histórico podem “garantir uma participação efetiva da sociedade na definição das diretrizes e das práticas de preservação”, acrescentando que qualquer tombamento “torna-se ineficaz se estiver dissociado das demais diretrizes da política urbana”.
No bojo do processo de tombamento do “Casarão” reina a possibilidade de iniciarmos uma ampla reflexão que mobilize outros setores da sociedade e órgãos governamentais com a finalidade de se estabelecer uma política democrática de patrimônio histórico, posto que a cidade é um “organismo vivo” e que o “reconhecimento do direito ao passado está, portanto, ligado intrinsecamente ao significado presente da generalização da cidadania”, como nos lembra Maria Célia Paoli. Reconhecimento esse que seja capaz de conviver com as diferenças, com as múltiplas memórias nas quais o lembrar e o esquecer são faces da mesma moeda. Daí ser necessário aceitar os riscos e “encontrar as solicitações por uma memória social que venham baseadas em seu valor simbólico, mesmo que sejam locais, pequenas, quase familiares. Não temer restaurar e preservar o patrimônio edificado sem pretender conservar o ‘antigo’ ou fixar o ‘moderno’. Orienta-se pela produção de uma cultura que não repudie sua própria historicidade, mas que possa dar-se conta dela pela participação nos valores simbólicos da cidade, como o sentimento de ‘fazer parte’ de sua feitura múltipla” (Paoli, 1991).
Finalizando, meu voto é pela aprovação do Tombamento do Casarão, como Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Cultural do Estado do Acre, com as seguintes condições e providências imediatas a serem executadas sob a direção deste Conselho Estadual, única maneira de assegurar que os espaços públicos tombados e protegidos por lei não sejam privatizados pelos interesses de políticas de governo, mas devolvidos à sociedade para que dele possam usufruir livremente como garantia da cidadania cultural: 1) Convocação de um Audiência Pública, com ampla divulgação e a garantia de livre participação com direito a voz e voto dos que se fizerem presentes para decidir sobre o futuro imediato do lugar “Casarão”; 2) criação de uma Comissão Mista (Conselho de Patrimônio Histórico e entidades populares), com direito de veto, para participar do processo de formulação e execução do projeto de restauração do lugar “Casarão”. É o Parecer. Rio Branco, Acre julho de 2009.
Gerson Rodrigues de Albuquerque Historiador e Conselheiro – rep. Universidade Federal do Acre.

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