sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
TOMBAMENTO E MORTE DO CASARÃO
GERSON ALBUQUERQUE
Após inexplicáveis 10 anos de tramitação, no dia 13 de agosto de 2009, o “Casarão” foi tombado como patrimônio histórico e cultural do Estado do Acre. Alguns dias antes da reunião do Conselho Estadual do Patrimônio Histórico aprovar por unanimidade o tombamento, na companhia dos músicos Heloy de Castro e João Veras, do artista plástico Dalmir Ferreira e do professor e músico Écio Rodrigues, fui visitar a estrutura física da casa e a área de seu entorno que constituem o espaço tombado. Para nossa surpresa, encontramos no local alguns operários que, segundo nos informaram, estavam retirando as partes da casa que afetadas por cupins e “tudo aquilo que não fazia parte do Casarão original” por ordem do próprio governador do Estado.
Lembro que na mesma hora telefonamos para a Fundação Estadual de Cultura Elias Mansour (FEM) e obtivemos a informação que era isso mesmo o que estava acontecendo: apenas a preocupação em não permitir que o “Casarão se deteriorasse ainda mais”. Acreditamos na explicação, principalmente, porque na condição de relator do processo de tombamento, o motivo de nossa visita era fazer uma última vistoria sobre a casa e a área em seu entorno para concluir o parecer. Emocionados, percorremos toda a casa, conversando sobre nossas experiências naquele local que é parte de nossa formação. Fizemos fotografias, andamos pela área do entorno onde, no ano de 2001, um dos herdeiros do imóvel tentara construir um estacionamento para automóveis, tendo sido impedido através de uma liminar concedida pela Procuradora Patrícia Rego, do Ministério Público do Estado do Acre (MPE).
Fizemos várias projeções para a utilização daquele espaço histórico, após o tombamento. Na saída, voltei para a Ufac na companhia do Écio. Entrei em minha sala de trabalho e re-escrevi todo o parecer, envolvido pelo clima do “Casarão”, pelos ecos das vozes, dos poemas, das músicas que resistem visíveis e invisíveis em seu interior, desafiando a racionalidade cáustica das intervenções urbanísticas que procuram “transformar Rio Branco numa cidade moderna preservando suas tradições”.
Creio ser necessário lembrar que em 16 de agosto de 2007, em decorrência da aprovação do Projeto de Lei n° 12/2007, da então deputada Naluh Gouveia, pela Assembléia Legislativa do Estado do Acre, foi publicada no Diário Oficial do Estado do Acre a Lei n° 1.917 instituindo o “tombamento do Território Livre do Casarão”. A expressão “território livre” que confere sentido a lei coloca em evidência que os setores da sociedade riobranquense, em mobilização pelo tombamento do “Casarão”, assim como os legisladores, já tinham claro que não se tratava apenas da casa, mas de toda a área em seu entorno: a área dos fundos onde ficava a piscina – lamentavelmente soterrada – e a área ao lado direito que permite visibilidade às suas formas artísticas e arquitetônicas.
No entanto, uns dois meses após a aprovação do tombamento do “Casarão” como patrimônio histórico, artístico, arquitetônico e cultural do Estado do Acre, fomos surpreendidos com o início da construção de um prédio em alvenaria para dar lugar a uma agência da Caixa Econômica Federal, exatamente na área do entorno do imóvel recém tombado. Mais surpreendente ainda é que tal construção foi iniciada com o aval do Departamento de Patrimônio Histórico da FEM que tem como diretora a professora Suely Melo, uma espécie de curinga do serviço público acreano que, nas últimas duas décadas, atendendo a chamados de diferentes governadores (Romildo Magalhães, Orleir Camely, Jorge Viana, Binho Marques) tem ocupado diferentes pastas do poder executivo acreano: Instituto do Meio Ambiente do Acre, Secretaria de Saúde, Diretora de Patrimônio Histórico. Tudo isso, “naturalmente”, em decorrência de uma inacreditável “competência técnica”, dedicação e fidelidade a projetos governamentais por mais paradoxais que pareçam ser.
Nunca é demais lembrar os termos que deram sustentação à decisão do Conselho de Patrimônio Histórico, no ato de aprovação do tombamento do “Casarão”, um processo que demorou uma década em tramitação. No âmbito de nosso parecer, ressaltávamos que “uma década é muito tempo para a realidade social e histórica da Amazônia acreana. Muito mais tempo, ainda, quando paramos para observar que foi exatamente nesses últimos dez anos que passamos a acompanhar a planejada intervenção estatal em determinadas áreas das cidades acreanas, visando não apenas seu remodelamento estético-urbanístico, mas a ‘revitalização’, o ‘resgate’, a ‘preservação’ da memória histórica – a memória das classes dominantes - que passou a ser propagada como ‘a memória de todos: acreanos e não acreanos que vivem no Acre’. Propaganda essa que não poupou recursos públicos, distribuídos em fachadas de casas comerciais, seriados de televisão, construção, ‘revitalização’ ou ‘reformas’ de praças, mercados, palácios, áreas de lazer, chalés, entre outros, acompanhados por grandiosas inaugurações e uma incrível publicidade jornalística, panfletária, midiática”.
O tombamento do “Casarão” está impregnado de uma dimensão simbólica que a Diretoria de Patrimônio Histórico da FEM não levou em consideração ao conceder licença para a construção de um “prédio moderno” em seu entorno. Não tombamos “um lugar da memória oficial - a ‘casa de Fontenelle de Castro’ - como alguns inadvertidamente tentaram consignar em alguns dos primeiros documentos que culminaram com a elaboração do presente processo. Ao contrário disso, remete à memória social, aquela que não tem controle, aquela que está presente em diferentes pessoas de forma intensa e significativa em seus imaginários, em suas subjetividades, nas experiências que querem e gostam de lembrar e de re-significar”.
Esse lugar de referência carrega as marcas de projetos e utopias que nada têm a ver com a lâmina da racionalidade cartesiana da arquiteta Regina Kipper, responsável pelo projeto do “novo prédio” da Caixa Econômica Federal, ao tentar nos iludir afirmando que o contraste entre o “antigo” e o “moderno” irá valorizar as formas arquitetônicas e o estilo do “Casarão”. Menos ainda tem a ver com a argumentação da Diretora de Patrimônio Histórico da FEM que autorizou a construção do “novo prédio”, sob a alegação de que “está tudo legal” e que tal construção em nada irá ferir a visibilidade do “Casarão”. Fora isso, nenhuma discussão sobre o entorno do patrimônio tombado, sua restauração e devolução para a sociedade.
É como se tombássemos uma castanheira num dia e, no dia seguinte, autorizássemos o desmate da floresta em seu entorno. É essa a lógica de “terra arrasada” que preside a noção de patrimônio histórico de quem está à frente do Departamento de Patrimônio Histórico da FEM e de sua assessoria mais próxima: aquela que detesta “casas velhas” e que acha que elas têm mesmo é que ser demolidas “porque dão muito trabalho”.
A construção de um “novo prédio” no terreno contíguo ao “Casarão” representa a morte de nosso primeiro patrimônio histórico tombado nos marcos do que reza a legislação. Aceitar tal construção em nome de uma legalidade protocolar, sem levar em consideração as dimensões simbólicas e a visibilidade do “Casarão” tombado; sem estabelecer uma discussão séria sobre qual é o entorno do patrimônio histórico tombado ou sem levar em consideração que a lei impede ou limita construções nas vizinhanças de bens tombados, significa fazer coro com aqueles que à serviço da criminosa especulação imobiliária esconderam-se na calada da noite para fazer a demolição das históricas casas da professora Chrizarubina Leitão e Félix Lavocat. Definitivamente não é isso que esperamos dos gestores públicos e, principalmente, daqueles que têm que fazer valer as deliberações do Conselho Estadual de Patrimônio Histórico.
Gerson Albuquerque é professor vinculado ao Centro de Educação, Letras e Artes da Universidade Federal do Acre
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