sábado, 23 de abril de 2011

MONTEIRO, Clodomir. O PALÁCIO DE JURAMIDAN SANTO DAIME: um ritual de transcendência e despoluição (dissertação)

RESUMO

O culto do Santo Daime responde a necessidades de grupos que se situam entre populações primitivo/rústicas e rústico/urbanizadas e que também sofrem pressões do contexto macrossocial amazônico, pertencendo, pois, a uma formação sociocultural intermediária. Santo Daime identifica o ritual de consumo e a hierofanização da própria bebida, produzida por decocção da Banisteriopsis Caapi Spruce e Psychotria Spruce, duas plantas utilizadas por indígenas e caboclos bolivianos, peruanos e brasileiros. Os dois grupos (modelos socioculturais) descritos aqui funcionam na cidade e arredores de Rio Branco com raízes históricas comuns no grupo pioneiro surgido na segunda década deste século na cidade acreana de Brasiléia. Histórica e estruturalmente estão associados ao movimento migratório regional e inter-regional e à progressiva expansão da sociedade global. Os comportamentos (Cantos do Exílio e Vozes do Êxodo) caracterizam respectivamente grupos antigos já fixados e os mais recentes expulsos dos seringais ou atraídos pela frente de ocupação capitalista. Não se trata porém de oposição exclusiva entre os dois comportamentos e sim de uma dialogia (*) social. Os Sistemas de Juramidan, todavia, não se explicam apenas como resposta a crises, mas se constituem em experiências de homogeneidade onde a imprevisibilidade gerou manifestações culturais híbridas através da repetição de ritos de renovação universais. O sonho e as experiências extáticas instituem estruturas de plausibilidade e padronização de relações sociais onde a metade noturna do homem não se divorcia da metade diurna. A ponte entre o tempo onírico e o tempo da vigília ainda não se rompeu ou já foi reconstituída.



(*) Apud Mario Chamie, 1972 p.10ss,Texto Monológico e Texto Dialógico

SUMÁRIO

 

I  -  INTRODUÇÃO


Capítulo I – O Culto do Santo Daime como Objeto de Estudo.
Capítulo 2 – O Santo Daime: Aspectos Etnobotânicos e Fitoquímicos.


II – ESTRATÉGIA DE ABORDAGEM..............................................................

Capítulo 3 – Um Ritual de Passagem.....................................................................
Expansão e Concentração Demográfica na Amazônia.........................................
A penetração Capitalista e Suas Conseqüências...................................................
Concentração e Expansão Demográfica ...............................................................
Penetração  Capitalista,  Urbanização,  Desorganização  Social  e  Organização
Cultural.....................................................................................................................
Experiências de Homogeneidade...........................................................................
Duração Real, Duração Mítica e Duração em Si ..................................................
Ecologia dos Atos e Ordenações Corpóreo-temporais ..........................................
Vozes do Êxodo e Cantos do Exílio .......................................................................
Vozes do Êxodo ......................................................................................................
Cantos do Exílio ......................................................................................................
Os modelos Sócio-Culturais ...................................................................................
Centro Espírita e Culto de Oração “Casa de Jesus” Fonte de Luz ........................
Centro Espírita Fé, Luz, Amor e Caridade .............................................................
Centro Espírita Beneficente União do Vegetal .......................................................
Os sistemas de Juramidan......................................................................................
Círculo Regeneração e Fé......................................................................................
Centro de Iluminação Cristã Universal....................................................................
(Alto Santo)..............................................................................................................
Centro    de    Iluminação    Cristã     Universal    “Raimundo   Irineu    Serra”    –
CEFLURIS – Colônia 5000.....................................................................................


III – O CULTO DO SANTO DAME.....................................................................


Os sistemas de Juramidan......................................................................................
Primeiras experiências ...........................................................................................
A Legitimação dos Mestres ....................................................................................
O Santo Daime .......................................................................................................
O Caminho para o Astral ........................................................................................
A Dança ..................................................................................................................
O Ritual de Transferência e Despoluição ..............................................................
O Sonho e as Experiências Alucinatórias...............................................................
Visões de Iniciação .................................................................................................
A Prece ...................................................................................................................
O Hinário .................................................................................................................
As Santas Doutrinas................................................................................................
Os Sacramentos......................................................................................................
A Linha do Daime....................................................................................................

IV – O CULTO DO SANTO DAIME E O CONTEXTO MACROSSOCIAL.


O Projeto de Ordem................................................................................................
O Palácio de Juramidan..........................................................................................
Considerações Finais..............................................................................................

V – DEPOIMENTOS............................................................................................

VI – HINÁRIO (Antologia)...................................................................................
VII – QUADROS ...................................................................................................
VIII – PLANTAS....................................................................................................

IX – INDICE TERMINOLÓGICO........................................................................

XX – BIBLIOGRAFIA ..........................................................................................



1. O Culto do Santo Daime como objeto de estudo


O consumo ritualizado de uma beberagem considerada sagrada, o Santo Daime, por dois centros de espiritismo popular, nos arredores de Rio Branco, Acre, é o assunto principal da presente monografia.
A pesquisa realizada em três etapas, tentou reconstituir o processo histórico formativo dos grupos, a estrutura simbólica e social, bem como as partes centrais dos rituais.
Na fase preliminar, de agosto a novembro de 1978, com objetivo de apreensão simultânea da estrutura simbólica e do intenso sistema de trocas, foi feito o levantamento exploratório dos grupos através de entrevistas abertas, observação participante, fotos, registros dos cantos (hinos), danças e demais atividades predominantemente religiosas.
A presença de traços da cultura indígena na forma de preparo da bebida, no ritual de consumo, palavras nos hinos, bem como a mitificação (hierofania) do sol, da lua, na interpretação e forte influência do sonho (e das “mirações” ou visões extáticas), por um lado, e as técnicas de concentração, devoção dos santos e práticas tradicionais do cristianismo, de outro, pareciam indicar um conjunto cultural sincrético, com elementos de formações sociais rústicas e urbanizadas. Constatou-se até a estreita relação dos rituais com o dia-a-dia dos devotos, envolvendo e dinamizando esferas da vida de cada um e dos grupos. O consumo do Santo Daime sugeria não poder ser descrito como simples manifestação patológica de indivíduos ou delírio coletivo, de efeitos danosos à saúde física e mental. Referido culto e o intenso sistema de trocas inter e intragrupos pareciam apontar para uma articulação funcional e estrutural; estariam respondendo às necessidades e pressões do contexto onde concretamente existem. 
Durante os primeiros quatro meses de maio de 1980 efetuamos nova pesquisa de campo, procurando aprofundar variáveis relacionadas com as hipóteses mencionadas no parágrafo anterior. Era preciso reconstituir a história do culto a partir dos dados preliminares colhidos junto a participantes do extinto centro pioneiro, o Círculo Regeneração e Fé (CRF), Brasiléia, Acre. Por ocasião da observação participante, dessa segunda etapa, iríamos levantar informações ligadas também à hipótese fundamental de que o culto do Santo Daime seria vasto ritual de transcendência e de despoluição.
A terceira etapa desdobrada em três fases, realizada respectivamente, nos quatro primeiros meses de 1981; de maio a dezembro do mesmo ano e, finalmente, durante o primeiro semestre de 1982. Após levantamento e análise da bibliografia disponível sobre uso ritualizado da “ayahuasca”, outro nome para a bebida entre indígenas, caboclos e população urbana de Tarauacá, no Acre, voltamos a entrar em contato com os “Sistemas de Juramidan”, designação que utilizamos para os grupos pertencentes à tradição do CRF. Pretendíamos elucidar questões relacionadas ao “feitio”, rito de preparo da beberagem, e como se verificava o processo de legitimação dos novos hinos. Buscávamos estabelecer comparações entre o atual estágio do culto e as antigas manifestações mágico-religiosas associadas ao consumo desses alcalóides. Os relatos fornecidos por antropólogos e publicações especializadas acusavam a presença de um continuum: à medida que nos afastávamos dos grupos urbanos a institucionalização da função social do sonho e das experiências alucinatórias era mais acentuada. Os autores apontavam a sobrevivência do uso cerimonial como legitimação da organização social entre grupos praticantes de aldeias próximas às margens dos rios Juruá e Purus (77), em estágio de transfiguração étnica (113:454).
A primeira fase da última etapa caracterizou-se, portanto, pelo levantamento e prática participante junto aos dois mais importantes ritos ligados à idéia central da investigação. A análise dos novos dados levou-nos à ampliação da investigação pela qual elaboraríamos as conclusões. Assim, na segunda fase dessa última etapa, tratamos de relacionar os ritos de transcendência e de despoluição com um possível projeto de ordem que surgia como tentativa de explicação funcional/estrutural. Queríamos uma estratégia de interpretação que simultaneamente desse conta dos aspectos simbólicos do culto sem limitar tal interpretação a qualquer determinismo. O projeto de ordem, contudo, apresentava contornos diferentes em ambos os grupos pesquisados. Os dois, porém, poderiam ser interpretados como respostas às pressões e necessidades do contexto macrossocial, eram mais que simples manifestação de protesto ou conformismo face às mudanças social e econômicas ocorridas na região; poderiam também ser analisados como estruturas de plausibilidade, cuja visão do mundo indicava uma mudança etológica, com a incorporação dos novos padrões culturais ameríndios, sem contudo abandonar antigos valores e formas de percepção e construção da realidade. Ambicionávamos, assim, responder à perguntas de “como os grupos surgiram e porque ainda subsistiam”. Os grupos pareciam estar relacionados aos comportamentos coletivos de fixação às novas condições ambientais ou de resistência. Classificamos os dois estilos de comportamento ou atitude coletiva de “Cantos do Exílio” e “Vozes do Êxodo”, adotando como estratégia de abordagem a formulação de um “ritual de passagem”. As experiências alucinatórias[1] poderiam também ser antepostas, não de forma exclusiva ou definitiva às experiências de acomodação ou busca de uma ordem voltada para a solução de necessidades imediatas. Verificamos, por fim, que o pensamento mágico-religioso, apesar de refletir socioculturalmente as formações intermediárias, num processo de reinterpretação cultural, repetiam ritos de renovação conhecidos universalmente. Com isto conseguíamos uma interpretação abrangente que dava conta do diferente e do semelhante, sem cometer o erro do determinismo ou prender as manifestações de consciências individuais e coletivas às necessidades e pressões do ambiente.


[1] Termo substituído, há mais de vinte anos, pela expressão experiências enteogênicas. Alguns pesquisadores têm criticado o termo científico alucinógeno, por sugerir uma percepção falsa e ilusória da realidade. Uma opção adotada tem sido enteógeno, originário do grego antigo, com o significado de “Deus dentro” ou “o que leva o divino para dentro de si”. Outra, mais ligada à contracultura, é psicodélico, “aquilo que revela o espírito ou alma”.(  Todas as vezes que aparecer ou suas cognatas , como enteógenos (, deverão ser lidas conforme o registro aqui feito. Rio Branco 14 de maio de 2004 ( o autor ).


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