A espátula e a poeira nas bibliotecas |
Escrito por José Porfiro da Silva | |
17-Ago-2011 | |
As bibliotecas comumente são lembradas pelos livros, pois são tradicionalmente definidas como espaços para guardá-los. Embora, atualmente tudo tenha mudado. Quando pensamos em bibliotecas nem sabemos mais ao certo como defini-las. Talvez como locais (concreto, virtual e/ou misto) destinados a todo tipo de informações, nos mais variados formatos. Em 1945, há exatos 66 anos, quando George Orwell publicou “A revolução dos bichos”, só era possível lê-lo no papel. Hoje podemos encontrá-lo, a qualquer momento, em papel ou nas chamadas bibliotecas do século XXI, que são baseadas nas tecnologias de informação e de comunicação (TICs), com escritos armazenados em todos os formatos imagináveis. Entretanto, ainda tenho muitas lembranças das bibliotecas tradicionais. Destas, a primeira que frequentei assiduamente, na escola técnica onde cursei o segundo grau, tinha um acervo limitadíssimo, em qualidade e quantidade, levando-me a ler necessariamente o que chamasse atenção. Nos dias de hoje, o problema é o inverso. Conforme estimativas, todo o conteúdo produzido num único dia, possível de acesso, não conseguiríamos lê-lo durante a existência de nossa vida. Mas, nossas reminiscências de bibliotecas não se restringem aos livros. Cinco delas são marcantes: Uma, a primorosa descrição da Biblioteca de Alexandria, por Carl Sagan, na reconhecida série Cosmos, famosíssima no final dos 1980, quando ele mostrava o papel que aquela “cidadela da consciência humana” exerceu no estudo sistemático dos fundamentos da matemática, da física, da biologia, da astronomia, da literatura, da geografia e da medicina, há dois mil anos. Mesmo que no final, ele termine meio melancolicamente, “do conteúdo científico desta gloriosa biblioteca não resta um único manuscrito”, dificilmente encontramos algo descrito de modo tão encantador. Duas, a grandiosidade de nossa Biblioteca Nacional, no contexto latinoamericano, com um acervo de mais de oito milhões de obras (a sétima pública do mundo) e estrutura altamente suntuosa (composta por peças vinda da Inglaterra, França, Alemanha), que se originou de um acervo de coleções de livros de D. João I e de seu filho D. Duarte, de sessenta mil peças, trazido para o Brasil, em função de um incêndio ocorrido em 1755. Três, as tristes imagens e lamentações da destruição da Biblioteca Nacional do Iraque, mediante bombas e mísseis lançados pelo império norteamericano, há quase uma década, extinguindo peças de mais de cinco mil anos. E quatro, o tamanho assustador da biblioteca do congresso do império norteamericano, a maior do mundo, onde se pode encontrar praticamente tudo o que é produzido no mundo, incluindo todas as mensagens de twitters que diariamente circulam pela internet. E voltando especificamente às bibliotecas de livros, a minha é melhor. A propósito de biblioteca particular, não custa nada falar de duas delas. A primeira é a incrível biblioteca do professor Delfim Netto, ex-ministro da ditadura, ex-embaixador, em Paris, ex-parlamentar, com mais de 250 mil livros (Revista Piauí, edição 55), em processo de doação à FEA/USP, por motivos iminentes do fim da vida polêmica deste influente intelectual brasileiro, agora com 83 anos de idade. A segunda é a do baiano Rui Barbosa, que em primeiro de tudo me prendi a uma espátula tão bem exposta na Fundação Casa de Rui Barbosa. Talvez seja o local onde eu tenha notado mais detalhes no processo de organização de livros; tudo personalizado (estantes fixas e móveis; poltrona e cama de leituras; cadeira/escada). São 37 mil volumes, capazes de impressionar qualquer visitante. Se ele fosse contemporâneo de Delfim, com certeza teria superado os trezentos mil exemplares. Quando cheguei num dos 22 ambientes da casa, daquele que como Ministro da Fazenda tomou medidas no sentido de queimar os arquivos relativos à escravidão no Brasil, a guia explicou: “aqui, ele usava a espátula, soltando as folhas dos livros, que naquela época muitos vinham com as folhas grudadas”. Não tenho uma espátula, como Rui Barbosa. Atualmente, poucos livros vêm com problemas nas folhas. Eu preciso de outro utensílio. Os livros da minha biblioteca que estão distantes de mim, temporariamente, devem estar encobertos de poeira, o que não será possível limpá-los com uma espátula. Professor de economia da UFAC. Na internet: twitter.com/jporfiro; e-mail: jporfiro@yahoo.com.br. Fonte: http://pagina20.uol.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=23975&Itemid=35 |
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