Não se sabe ao certo a origem do vocábulo Acre. Até
o momento, o registro mais antigo com esse nome é um documento assinado pelo
Brasil e pelo Peru em 23 de outubro de 1951. No Art. 1, § 7º do Tratado de Comércio, Navegação, Limites e
Extradição, consta a expressão “a margem esquerda do
rio Acre ou Aquriy”. O documento revela que desde o início dos anos 1850 aquele
rio já era reconhecido por meio de duas grafias ou duas imagens acústicas. O
uso do termo “rio Acre” foi mais corrente entre os migrantes brasileiros, já
entre os bolivianos, até a primeira metade da última década do século XIX, o
mais frequente foi “rio Aquiry”.
Acredita-se
que o “Aquiry” tenha origem em uma das palavras de língua tupi “Uwákürü” ou “Uakiry”, faladas pelos índios apurinãs (ipurinás), e que significam “rio dos jacarés”. Ou
mesmo do vocábulo “Yasi'ri” ou “Ysi'ri” que significa “água corrente, veloz”. Há quem defenda ainda que tenha surgido do léxico tupi “akyrá”, nome de
uma tribo indígena que viveu na região do atual Estado do Ceará, e que
significa “gordo”.
As hipóteses sobre a origem do nome “Acre” são muitas. Castelo Branco
(1958, p. 4), menciona que houve quem defendesse a procedência fenícia da
palavra “Acre”. Porém, a mais aceita hipótese é a de o nome tenha surgido do
aportuguesamento de uma palavra indígena. Para uns, a palavra foi “a'kir ü”, de origem tupi, que significa
“rio verde”; para outros, da palavra foi “Aquiry”, já mencionada. Como
aconteceu tal “aportuguesamento”? Para essa pergunta também há várias
respostas.
Para Castelo Branco (1958, p. 4), por exemplo, o fenômeno aconteceu no
início dos anos 1870, quando os exploradores brasileiros da região puruense
transformaram a palavra apurinã “uakiry” em “aquiri”, “aqri” e depois “Acre”.
Ele diz que em 1871, “Labre (Antonio Rodrigues Pereira Labre) encurtara (a
palavra Aquiri) para Acre, grafia esta de que ele fora o primeiro a adotar e a
publicar” (idem, ibidem, p. 45). O
autor chega a dizer que o “Aquiri” era o nome primitivo de “Acre” (idem, ibidem, 72).
Também
é muito conhecida a explicação de que o aportuguesamento tenha surgido através
de um erro de grafia do Aquiry ou Aquiri. O fato teria acontecido em 1878,
quando João Gabriel de Carvalho, o “primeiro” colonizador do rio Aquiri,
escreveu ao comerciante do Pará, Visconde
de Santo Elias, pedindo para que certa quantidade de mercadorias fosse
destinada à "boca do rio Aquiri". O comerciante não entendendo a
grafia de João Gabriel, achou que o mesmo havia escrito algo como “Acri” “Aqri”
ou “Acre”. Reza a “lenda” que a partir de então, todas as mercadorias
destinadas para aquela região foram com o nome “rio Acre”.
Há
quem diga que a origem do nome Acre esteja nas propagandas feitas no Ceará
pelos responsáveis por arregimentar mão de obra para a extração da borracha.
Para convencer os matutos, supostamente se dizia que a Amazônia era uma região
rica e fértil e que lá ninguém ficaria sem um “acre de terra”.
Muitas
outras explicações ainda são possíveis, contudo, mencionaremos apenas mais uma,
a de que o nome guarda relação com um porto mediterrânico conhecido como São João de Acre. Esse porto ficou notório na história por ter sido
palco do mais importante conflito armado entre muçulmanos e cristãos durante as
Cruzadas do século XIII, e que acabou por definir a hegemonia islâmica na Terra
Santa.
Atualmente esse “Acre” é uma pequena
cidade da região norte do Estado de Israel e fica cerca de 160km de Jerusalém.
Na língua hebraica, o porto é chamado de Akko. Por ter mais de quatro mil anos,
é natural que a região tenha recebido outros nomes. Mas é sabido que por quase
toda a Idade Média o topônimo “Akre” se tornou o mais comum, principalmente
quando virou capital do Reino de Jerusalém. Judeus, árabes e cristãos de todo
mundo aportaram em Belém e em Manaus antes mesmo do boom da borracha, e potencialmente, qualquer um deles poderia ter
nomeado esse rio amazônico de Acre. Embora com chantes remotas, essa hipótese não
pode ser descartada sem que antes se feita uma pesquisa mais séria.
Diante de tantas indagações, podemos
afirmar que o nome Acre não é um patrimônio dos primeiros acrianos, pois não
foram eles que inventaram a palavra. Como falei inicialmente, há menção dessa
palavra em documento oficial datado em 1851, ou seja, antes da colonização
daquela região por brasileiros. Além do mais, no livreto Rio Purus (1972),
escrito por Antonio Labre, já constava a palavra “rio Acre” e mo Jornal do
Amazonas, em sua edição de 16 de novembro de 1876, p. 2, menciona que um vapor
por nome “Acre” navegava o rio Purus. Portanto, o vocábulo “Acre” é anterior à
primeira geração de acrianos. Não é impossível que o topônimo Acre tenha
surgido a partir de uma palavra indígena, mas esse fenômeno linguístico, se é
que aconteceu, é anterior à segunda metade do século XIX.
A expressão “rio Aquiri ou rio Acre”
continuou sendo empregada durante um bom tempo, mesmo com a hegemonia
brasileira na região. Ela está no texto do Tratado de Petrópolis (1903) e no do
Tratado de Limites Brasil-Peru (1909). Na década de 1960, autores como Castelo
Branco (1958) ainda a usava. Tudo indica que o nome “Aquiri ou Aquiry” só
desapareceu lentamente do vocabulário amazônico. Na verdade, o nome “Acre” só
se tornou mais usual com a proclamação do Estado Independente do Acre por Galvez
em julho de 1899. E é possível que ele tenha escolhido o nome devido ao fato
daquele rio ser o mais rico em seringueiras, consequentemente, o mais populoso,
o mais trafegável e o mais importante da região.
Quando Luiz Galvez estende a
significação do nome Acre para muito além das terras banhadas por aquele rio, deu-se
o início de uma operação semiológica, ou seja, um acontecimento enunciativo de
nomeação. Ele usa o nome Acre para identificar uma outra coisa que não era o
rio que deságua à margem direito do Purus, e sim um ente político
administrativo, uma pessoa jurídica de direito público. Portanto, o Acre
inventado por Galvez não era o mesmo “Acre” que dava nome ao rio. São dois
signos linguísticos diferentes, embora sendo homônimos, com mesmo significante
e mesma “imagem acústica”.
Quando estudamos a semântica de um
acontecimento enunciativo, é preciso tratá-lo como um fenômeno singular, mesmo
que sua erupção no universo discursivo esteja marcada pela interdiscursividade.
Assim sendo, apesar de haver um diálogo entre a “República do Acre” e “rio
Acre”, ambos são signos diferentes, designam coisas distintas, o primeiro não é
a continuação do segundo, não há uma cadeia de linearidade entre eles.
O “Acre” de Luiz Galvez era um Estado
soberano que adotara a forma republicana de governo. A república pressupõe o
exercício da cidadania, que pressupõe um vínculo jurídico entre o indivíduo e o
Estado. Nesse caso sim, há a necessidade da invenção de um “gentílico”, que
passará a identificar o cidadão com o Estado em que ele nasceu ou em que ele
exerce a cidadania. Posso afirmar que foi a partir de então que o gentílico
“acreano” se tornou frequente na linguagem regional.
O gentílico, portanto, não tem 138
anos de uso como afirma a Academia Acreana de Letras, pois isso significaria
dizer que o vocábulo tivesse surgido em 1878, com a primeira ofensiva
colonizadora de brasileiros em terras à margem do rio Aquiri ou Acre. E mesmo
que houvesse alguma referência do gentílico nesta data, coisa que não tem,
dizer que ele tem 138 anos é tratar os diferentes signos homônimos como se
fossem um único signo.
O sujeito reconhecido como “acrEano”
por residir às margens do rio Acre, não pode ser tratado como o mesmo sujeito
que se tornou a “acrEano” por ser um cidadão de um país chamado Acre. Nesse
país, no caso o Estado Independente do Acre, um sujeito poderia ser considerado
“acrEano”, mesmo não residindo próximo ao rio Acre, já que a identificação
territorial do nome “Acre” se tornou mais ampla, sendo possível agora um sujeito
residente às margens do rio Iaco também ser chamado de acrEano. A mudança não
foi apenas na extensão territorial que o nome agora passava a designar, houve
também uma mudança qualitativa. O território deixava de ser uma mera
localização residencial do sujeito para se tornar o espaço jurisdicional de um
Estado soberano.
A história do “acrEano” cidadão da
República do Acre não é a mesma daquele sujeito que antes da República era supostamente
tratado como “acrEano” tão somente por morar nas proximidades do rio Acre.
Dizer que a origem de um está na sequencia evolutiva do outro é desconsiderar
que ambos foram produzidos por fenômenos de subjetivação distintos. Como
fenômenos singulares, cada um deve ter sua narrativa própria, pois não se trata
de um mesmo “acrEano” que vem evoluindo com o tempo.
Da mesma forma, temos um anacronismo
quando se afirmar que o gentílico “acrEano”, designador do sujeito natural do
Estado do Acre, unidade federativa da República do Brasil, tem origem em um
tempo em que sequer esse Estado existia. Como pode? A narrativa oficial impõe a
temporalidade linear e tranquilizadora do identifico, eu prefiro mostrar a
tensão da dispersão temporal daquilo que é naturalmente movente e distinto por
si mesmo. Não há uma cadeia de derivação enunciativa entre um e outro. O lastro
histórico e continuísta que reagrupa os diferentes homônimos em uma mesma
narrativa é artificialmente construído.
Mesmo com a dissolução da República do
Acre em março de 1900, os defensores da Questão do Acre continuaram empregando
o gentílico, visto que era útil a causa, pois promovia a união entre as pessoas
e a mobilização delas. Naquele contexto, ser acriano significava mais a ideia
de não ser boliviano, do que propriamente de ser brasileiro. Isso por que, como
já vimos, durante a vigência da República do Acre, ser “acrEano” também
significava não ser brasileiro.
Eduardo Carneiro é professor da UFAC, escritor, historiador, economista e doutorando em Estudo Linguístico pela UNESP. Este artigo corresponde a um trecho do livro: O Discurso Fundador do Acre(ano): História e Linguística.
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