segunda-feira, 23 de abril de 2007

Desenvolvimento e Conservação Ambiental: Políticas Sócio-Ambientais do Governo do Acre

Por: Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior, da Universidade Federal do Maranhão RESUMO Este trabalho é fruto do subprojeto “O caso do Acre”, inserido na pesquisa “Projetos socioambientais na Amazônia brasileira – Atores e trajetórias”. O Governo estadual do Acre, desde 1999 assume oficialmente o desenvolvimento sustentável como eixo de suas políticas governamentais, através da articulação de conservação ambiental com exploração econômica da floresta e garantia de condições de vida às populações agro-extrativistas. A pesquisa revela que no interior da equipe de governo encontra-se uma divisão entre sustentabilistas e desenvolvimentistas, indicando posições que reivindicam uma ênfase maior das políticas governamentais na defesa e conservação ambiental ou no desenvolvimento sócio-econômico, respectivamente. O interesse da pesquisa está na percepção de como as posições políticas dos vários agentes governamentais interferem nas ações de governo e como estas incorporam, ou não, as questões sócio-ambientais, com destaque para aquelas referentes à Reservas Extrativistas. A investigação sobre a divisão entre sustentabilistas e desenvolvimentistas, seus confrontos e colaborações, seus vínculos com os vários setores sociais, os resultados obtidos na formulação e execução das políticas governamentais, pretende ser um instrumento para aprofundar o debate sobre socioambientalismo e desenvolvimento. Desde 1999, venho estudando as políticas sócio-ambientais do Governo Estadual do Acre, sua relação com os movimentos sociais, bem como, com o projeto de desenvolvimento e integração nacional da Região Amazônica , formulado pelos Governos Militares do período de 1964 a 1985. O estudo sobre políticas sócio-ambientais no governo acreano teve como motivação inicial a percepção de que, a partir de 1999, o governo estadual passou a ser conduzido, majoritariamente, por um grupo de militantes partidários oriundos e/ou vinculados, direta ou indiretamente, a movimentos sociais e de defesa ambiental, cuja expressão de maior visibilidade nacional e internacional é o movimento de seringueiros. Autodenominando-se Governo da Floresta e assumindo como eixo orientador da ação governamental a florestania , este grupo passou a governar o Acre graças à vitória eleitoral da Frente Popular do Acre, nas eleições de 1998. Naquele momento, tratava-se de uma frente partidária composta por doze partidos (PT, PSDB, PC do B, PMN, PL, PDT, PPS, PV, PTB, PT do B, PSB e PSL), que lançou as candidaturas do engenheiro florestal Jorge Viana (PT) e de Edson Simões Cadaxo (PSDB) para Governador e Vice-Governador, respectivamente. Nas eleições de 2002, a Frente foi recomposta, agora com apenas sete partidos (PT, PV, PT do B, PMN, PC do B, PL, PSDC) e sem a presença do PSDB, que havia indicado o Vice na composição anterior. Arnóbio Marques de Almeida Júnior – Binho, do PT, foi o candidato a Vice-Governador. Jorge Viana foi reeleito para o mandato de 2003-2006. Nestas duas eleições, a Frente Popular contou com o apoio de parte significativa dos movimentos sindicais, populares e ambientais atuantes no Acre, apresentando-se como a possibilidade de implementação de propostas e políticas alternativas que pretendem articular critérios ambientais e medidas de crescimento econômico para o Estado, combinados no conceito de desenvolvimento sustentável. Outra motivação para o estudo, de fundo histórico, foi encontrada na constatação de que somente no final do século XIX, em função da implantação da empresa seringalista, o Acre foi ocupado e incorporado ao mundo moderno, numa iniciativa que visava o fornecimento de matéria-prima necessária aos pólos industriais mais dinâmicos. A forma e o movimento histórico de incorporação do Acre oferecem elementos para aproximar seu estudo da discussão sociológica sobre a modernidade, incorporando conceitos e noções produzidos no âmbito desta discussão . Além disso, as lutas sociais intensificadas a partir da década de 1970, como reação às políticas de desenvolvimento implementadas por sucessivos governos estaduais e federais, provocaram o surgimento do movimento de seringueiros que, na busca de evitar a derrubada da floresta, contou com muitos aliados e aspectos conjunturais favoráveis. Conseguiu, assim, um nível bastante significativo de organização, de capacidade propositiva, de articulação com outras forças sociais e de obtenção de resultados. Os seringueiros ampliaram a eficácia de seu movimento quando passaram a incorporar, em meados dos anos 1980, o discurso ambientalista para justificar suas lutas e como instrumento de consolidação de alianças políticas para além da região amazônica, articulando seus interesses particulares e locais com características universais e mobilizações globais. A busca de entendimento das relações entre o Governo da Floresta, suas políticas sócio-ambientais e o movimento social não pode deixar de considerar a influência definitiva que as políticas de desenvolvimento implementadas pelos governos militares exerceram no Acre e na Amazônia. O projeto de desenvolvimento amazônico dos governos militares tomou forma através de grandes projetos de infra-estrutura (estradas, ferrovias, aeroportos, hidroelétricas, centro espacial) e de exploração direta de potenciais econômicos, principalmente, vinculados à mineração, à agricultura, à pecuária e à atividade madeireira (BUNKER, 1988; CARDOSO e MÜLLER, 1977; IANNI, 1979; SANT’ANA JÚNIOR, 2004). A implementação destes projetos não se restringe ao período dos governos responsáveis por sua elaboração, mas seus desdobramentos e conseqüências sociais e ambientais chegam aos dias atuais. Esta relação/tensão entre políticas sócio-ambientais e projetos de desenvolvimento e integração amazônica é foco da pesquisa, na medida em que permite atualizar o uso das noções de modernidade, desenvolvimento e desenvolvimento sustentável presentes nas formulações sócio-ambientais acreanas. Neste artigo, centraremos a atenção nas principais políticas sócio-ambientais do Governo e na tensão em torno das noções de desenvolvimento e sustentabilidade existente no interior da equipe de governo, encarregada, em última instância, de formular e executar estas políticas. 1. Primeiras medidas do Governo da Floresta e o socioambientalismo No percurso da pesquisa, foi possível, constatar, no discurso dos agentes governamentais, a tendência dominante de defender a idéia de que há um íntimo relacionamento entre as políticas públicas estaduais e a luta dos seringueiros e demais trabalhadores do campo, ou mesmo, de que este governo seria herdeiro das lutas sociais acreanas, em especial, aquelas protagonizadas pelo movimento dos seringueiros. Isto pode ser exemplificado na fala do Prof. Angelim : O Acre tem um movimento social no campo muito forte, que começou com Wilson Pinheiro em Brasiléia, com Chico Mendes em Xapuri, em Tarauacá, em Cruzeiro do Sul, em Feijó. O Governo tem responsabilidade e preocupação de dar para essas populações do campo condições dignas de sobrevivência, através de parcerias que possibilitem o aumento e circulação da produção (entrevista realizada em 23/11/2000). No mesmo sentido, examinando a relação entre as forças políticas e sociais que compuseram Governo, Toinho Alves , afirma a herança da luta dos seringueiros compunha seu núcleo de poder: Nós temos uma coligação muito grande no Governo do Estado, na qual este setor com interesse na floresta, que vem dessa luta dos povos da floresta, constitui o núcleo de maior densidade no interior do governo. Não de maioria física, mas de maior densidade na elaboração do projeto do governo (entrevista realizada em 05/12/2000). Logo no início do primeiro mandato do Governo da Floresta, os termos conservação ambiental e povos da floresta (índios, seringueiros, ribeirinhos), passam a constituir-se em presença constante no discurso governamental. Com a finalidade de sinalizar as posições socioambientais do novo Governo, foram adotados o neologismo florestania e o slogan Governo da Floresta (ver notas 4 e 5). Segundo Toinho Alves, “Governo da Floresta é símbolo de que esse núcleo dos herdeiros da luta dos povos da floresta é o núcleo de maior densidade no interior desse Governo” (entrevista realizada em 05/12/2000). No organograma de Governo, foi criada a Secretaria Executiva de Floresta e Extrativismo, apresentada como um dos instrumentos para garantir que se efetivasse a desejada mudança no vetor de desenvolvimento do Estado, que estaria se voltando para a exploração racional dos recursos naturais. Carlos Vicente afirma que: Nunca houve na estrutura do Estado nenhuma instituição que estudasse estratégias para trabalhar as áreas florestais. A Secretaria de Floresta foi criada para que o Estado se oriente para a floresta, para produzir políticas públicas para 90% de seu território, que até então era visto como empecilho para o desenvolvimento (entrevista realizada em 12/12/2000). Analisando as motivações para reestruturação do organograma do Governo e, especialmente, a criação da Secretaria Executiva de Florestas e Extrativismo, Prof. Angelim argumenta que: O Governo parte do diagnóstico de que o modelo de desenvolvimento anterior levou a perda de milhões de dólares na exportação de madeira em toras e de que a falta de incentivo levou a queda assustadora da produção de borracha, provocando êxodo das florestas, com as famílias de seringueiros vindo para as periferias das cidades, provocando marginalização, prostituição e alcoolismo de seus membros e o aumento da violência urbana. Ao assumir, o Governo provocou um rearranjo da estrutura organizacional do Estado, criou a Secretaria de Florestas e Extrativismo, voltada exclusivamente para o setor extrativista... A Secretaria de Extrativismo não é a mais importante, mas tem a função de resgatar o extrativismo, que faz parte da história do Acre, implantando a florestania (entrevista realizada em 23/11/2000). Paralelamente à implementação do novo organograma, o Governo definiu ser necessário obter um diagnóstico e análise aprofundados da situação social, econômica, territorial, ambiental, biológica, do Acre, que norteassem o planejamento e a execução de políticas públicas. Assim, logo no início da gestão, procurou realizar o ZEE (Zoneamento Econômico-Ecológico) . Desde 1990, através do Decreto Presidencial nº 99.540, estava prevista a realização do ZEE (Zoneamento Ecológico-Econômico do Território Nacional), como um instrumento para gestão territorial. O decreto previa que os trabalhos de ZEE seriam executados pelo Governo Federal, ao nível macrorregional, e pelos Estados, ao nível mais detalhado. Definiu, ainda, a Amazônia Legal como área prioritária para realização do ZEE. Segundo Maria Janete Sousa dos Santos, coordenadora do GTS/ZEE/AC (Grupo Técnico de Sistematização do Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre), o Governador, quando assumiu o mandato, priorizou o Zoneamento como instrumento de ordenamento territorial do Estado e determinou que qualquer política de Governo deveria utilizá-lo como subsídio. Em abril de 1999, foi criado e lançado o ZEE/AC (Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Acre) e foi criada a CEZEE (Comissão Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico), composta por oito câmaras setoriais, envolvendo os mais variados setores da sociedade organizada. No início de 2000, após um amplo processo de pesquisa e discussão pública dos resultados alcançados foram publicados os três volumes resultantes da primeira fase do ZEE/AC. Ainda, como parte das primeiras medidas de Governo, foi enviado para a Assembléia Legislativa, em 13/01/1999, um Projeto de Lei, denominada Lei Chico Mendes, que previa o pagamento de subsídio para a produção de borracha diretamente aos seringueiros, a serem repassados através das associações e cooperativas (Ementário da Assembléia Legislativa do Acre, 1999). Segundo cálculos da Secretaria de Floresta e Extrativismo, o subsídio pago pela Lei Chico Mendes permitiria aumentar significativamente o ganho do produtor direto; conseguiria ser auto-sustentável na medida em que, com o aumento da produção, provocaria o aumento direto de arrecadação de ICMS e, reativando a economia local, permitiria o aumento da arrecadação total de impostos. Carlos Vicente afirma que: Para dar um sinal para o povo da floresta de que o Governo não era só discurso, logo no começo do mandato, foi criada a subvenção da borracha, elevando artificialmente seu preço, depois de passar três meses conversando com três mil extrativistas para definir como regulamentar, garantindo que os seringueiros recebessem diretamente o benefício, com o menor preço de transação possível (entrevista realizada em 12/12/2000). A insistência em frisar a predominância do que chamam de opção pela floresta, isto é, da predominância de pessoas com posições conservacionistas (ver nota 9) no núcleo do Governo é recorrente em quase todas as entrevistas realizadas com componentes da equipe governamental. Gilberto Siqueira , Secretário de Estado de Planejamento e Coordenação, enfatizando a possibilidade de relação entre meio ambiente conservado e produção econômica, afirma que: A alma do Governo é a questão ambiental. A questão ambiental no Acre é muito importante porque é a questão da vida dessa cultura e dessa civilização do Ocidente da Amazônia ... Na Amazônia a economia está no próprio ambiente. Quando os seringueiros falavam de reforma agrária, o que eles queriam era o direito de uso de bem coletivo que é a natureza. Esse uso é o uso econômico, numa relação de troca com a sociedade. Este é o ponto da questão ambiental na Acre... O Governo orienta, governa e normatiza toda essa coisa... Todas as ações do Governo partem do pressuposto ambiental (entrevista realizada em 20/12/2000). 2. O Governo da Floresta e o desenvolvimento sustentável O movimento ambientalista internacional produziu, nas últimas décadas, a noção pouco precisa e cada vez mais difundida de desenvolvimento sustentável, que se consagrou na Conferência Mundial do Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, em 1992. Na campanha eleitoral de 1998, o documento “A vida vai melhorar” (FRENTE POPULAR DO ACRE, 1998), apresentado como Programa de Governo pela coligação que ganhou a eleição, acatou uma demanda presente no âmbito dos movimentos sociais e assumiu como eixo central de sua proposta o desenvolvimento sustentável. Contudo, como se trata de uma noção pouco precisa, suscita inúmeros confrontos na busca de estabelecer seu significado. Ao se tornar eixo de Governo, exige uma explicitação de qual o entendimento está sendo adotado, fazendo emergir posições diferenciadas dentre aqueles que a enunciam. De acordo com Francisco Afonso Neponuceno, o Carioca , ... o modelo de desenvolvimento do governo atual pode ser afirmado mais por aquilo que ele não é do que pelo que pode vir a ser. No Governo existe consenso quanto ao que não é o modelo e divergências quanto ao que é. Ele não é predatório; não tem a idéia da floresta como empecilho, mas como progresso (progresso entendido não como fruto do desenvolvimento, visão típica do século XIX); deve ter visão ecológica do mundo, de equilíbrio do mundo. E um modelo que está em gestação. Sabe que não quer floresta devastada, seringueiro habitando a zona urbana, prefeituras sem condições de enfrentar demandas sociais acarretadas pela vinda em massa de seringueiros. A ausência de sistematizações ou de experiências concretas governamentais de esquerda, na Amazônia, deixou o Governo sem referência concreta de como trabalhar políticas públicas voltadas para a visão utópica do grupo que o compõe... Assim, não existe uma coisa acabada, o que permite a incorporação de novos ensinamentos e criatividade (entrevista realizada em 24/11/2000). Partilhando desta visão, o Prof. Binho afirma que ... nós não temos um projeto revolucionário para a Amazônia, nós não temos uma proposta econômica detalhada, nós não temos nada detalhado. Eu acho que o nosso projeto é ainda 90% sonho e 10% projeto pragmático, real e isso precisa aprofundar mais (entrevista realizada em 07/12/2000). Quando se discute o projeto de desenvolvimento que está sendo implantado no Acre, Toinho Alves apresenta uma concepção um pouco mais elaborada. Porém, esta posição está em disputa no âmbito do Governo, como veremos a seguir. Na concepção que apresenta há um confronto direto com a visão antropocêntrica típica do modo de pensar ocidental. Resultante do aprendizado junto aos povos da floresta, segundo o próprio Toinho, sua concepção supõe a inversão da noção de controle racional da natureza, da significação imaginária da modernidade, que deve ser substituída pelas noções de convivência e respeito. Toinho define o projeto de desenvolvimento que atribui ao Governo: Em primeiro lugar, reconhecimento da primazia indígena, existem povos que estão aqui e que conhecem a nossa região e cuja ciência deve ser respeitada. Esse é o ponto um. Mas, antes dele, tem um ponto zero. É o de que o antropocentrismo deve ser superado, o homem é parte da natureza, ele não é dono da natureza, ele não é toda a natureza, ele é uma parte dela... Todos os habitantes do planeta têm direito de viver e têm que ser ouvidos e têm que ser escutados... Esse novo contrato natural, é assim que está sendo chamado por aí afora, que transcende e abarca o contrato social, é o ponto zero, o ponto primordial do nosso pensamento... o ponto um seria a primazia dos povos indígenas e a validade de seu conhecimento e da sua cultura. O ponto dois seria talvez o reconhecimento dos direitos das populações... que tradicionalmente passaram a habitar essa região: seringueiros, ribeirinhos, extrativistas de uma maneira geral, que são os povos da floresta... Estes povos existem e podem e devem existir da maneira que eles quiserem existir. Então, esse ponto dos direitos de cidadania, ou melhor, dos direitos de florestania, esse é essencial. Agora, aí no diálogo com a civilização, a gente vai construindo alguns consensos. Um deles é sustentabilidade, serve para o planeta inteiro e serve para nós... (entrevista realizada em 05/12/2000). Segundo Carlos Vicente, o projeto de desenvolvimento sustentado do Estado abarca cinco dimenões: social, política, ambiental, econômica e cultural (entrevista realizada em 12/12/2000). Toinho Alves explica as cinco dimensões de sustentabilidade que norteiam a atuação do Governo: ...sustentabilidade ambiental, óbvio; sustentabilidade econômica, para que a gente possa viver; sustentabilidade social, porque não adianta ser um projeto ecologicamente sustentável, economicamente viável, mas que expulsa populações e manda elas serem periféricas nas cidades, portanto, criando um risco social que vai acabar até com a viabilidade econômica e ambiental, então, é necessário que seja sustentável socialmente também, distribua renda, acabe com a miséria, promova dignidade das pessoas; mas só que é necessário, para que isso aconteça, que o projeto seja politicamente sustentável, que todo mundo participe, que ele seja um projeto não de um governo mas de um povo inteiro... Não menos importante, sustentabilidade cultural... O nosso check list das sustentabilidades, ao levar em conta a sustentabilidade cultural, está querendo dizer o seguinte: nós temos identidade, esta identidade é produto de uma longa caminhada da humanidade, ela não pode ser desprezada, ela não pode ser desconhecida, ela é fruto de muito sofrimento. Cada uma das nossas cicatrizes tem que ser respeitada, cada uma das línguas que nós falamos aqui tem que ser preservada, cada um dos hábitos, dos costumes, do tipo de comportamento tem que ser considerado porque isso aqui foi a nossa sobrevivência, nós sobrevivemos assim (entrevista realizada em 05/12/2000). 3. Desenvolvimentistas e sustentabilistas A despeito de certa unanimidade em torno do desenvolvimento sustentável como meta da ação governamental, durante a realização do trabalho de campo, na entrevista com Célia Pedrina , ficou evidente que na equipe de Governo existe uma divisão entre duas posições gerais, cujos defensores são reconhecidos, respectivamente, como “sustentabilistas” e “desenvolvimentistas”. Diante desta evidência, segui perguntando aos membros da equipe do Governo se esta divisão realmente existia e se estas denominações eram reconhecidas por todos. Mesmos apresentado nuances de interpretação quanto ao caráter da divisão, todos os entrevistados concordaram com a existência das duas posições no Governo. Célia apresentou-me a polêmica da seguinte forma: Dentro do Governo, existem os desenvolvimentistas. Não há unanimidade com relação à questão ambiental e existem secretários que acham que a ação do Governo deveria passar somente pelo desenvolvimento. Até quando defendem o desenvolvimento sustentável, é só com relação à questão econômica. Hoje, desenvolvimento sustentável não significa mais desenvolvimento ambiental, privilegiando a ecologia, a preservação, manejo. Para os desenvolvimentistas, a sustentabilidade do desenvolvimento tem uma conotação mais forte, com criação de indústrias, empresas... existem os sustentabilistas (que submetem a produção de riqueza ao manejo sustentável e preservação) e os desenvolvimentistas (que partem do capital pelo capital e vêm a Amazônia como uma grande riqueza de cifrões, as águas e os produtos florestais são transformados em cifrões), que brigam para ver qual é o grupo que é o dono do domínio da melhor definição de sustentável. O grande embate que se dá, hoje, é o que quer dizer esse sustentável, se é sustentável econômico, em cifras, ou é sustentável economicamente viável, com manejo e conservação (entrevista realizada em 25/11/2000). Procurando caracterizar os dois grupos que comporiam o Governo, e tentando demonstrar que suas posições não são lineares e homogêneas e que, pelo contrário, se diferem bastante, ela afirma: Existem desenvolvimentistas arraigados no movimento social e outros que não têm nenhuma relação, e até horror a povo. Existem sustentabilistas, do ponto de vista da conservação, bastante arraigados no movimento social e outros que não conseguem se inserir no movimento social (entrevista realizada em 25/11/2000). A relação entre desenvolvimentistas e sustentabilistas é tão difícil que Toinho Alves se refere a uma “esquizofrenia” na equipe de Governo e aponta, ele mesmo, para a continuidade, a experiência acumulada do grupo e, por outro, para a novidade que representa a “esquizofrenia”, que se pode paralisar a ação governamental, pode também expressar uma experiência nova da gestão, com valores de justiça, proteção ambiental, sobrevivência econômica na floresta. Toinho Alves posiciona-se: Acho que podem ser considerados sustentabilistas e desenvolvimentistas. Mas, acho que o Governo, talvez agora, esteja começando a dar os primeiros passos para superar a sua esquizofrenia. Porque essa divisão permaneceu durante a fase inicial do Governo... Eu acho que nós temos uma... metade é Descartes e a outra metade é Pascal, metade de nós é materialista a outra metade é espiritualista, metade é engenheiro a outra metade é artista. Então, a gente tem, muitas vezes, sido paralisado, até, por essa divisão interna. Porque isso atrasa muito na hora de definir o que queremos. Na hora de fazer um projeto, quando sentam duas pessoas de orientação diferente, a briga é muito grande até que se chegue a um consenso sobre o que se deve ser colocado no projeto. Porque um acha que o dinheiro deve ser usado para ser financiado o asfalto e o outro acha que o dinheiro deve ser usado para ser financiado o barco (entrevista realizada em 05/12/2000). Ao dar seqüência ao seu raciocínio, Alves começa a apresentar um mapeamento das posições no interior do Governo e expõe claramente sua visão sobre qual deve ser a dominante em momentos chaves de decisão: Mas eu acho que em algum momento, e esse momento já chegou, o Governo vai ter que fazer escolhas sobre, afinal de contas, o que somos, qual a nossa identidade. Nessas escolhas eu acho que as duas vertentes que formam o Governo são necessárias, são duas pernas para caminhar. No entanto, acho que nós não podemos fugir do fato de que o projeto adequado para o ambiente em que vivemos é um projeto essencialmente sustentabilista. Nós temos que fazer uma opção clara pelo desenvolvimento, no entanto, em alguns momentos, sem dúvida, nós temos que optar pela sustentabilidade (entrevista realizada em 05/12/2000). Para outros membros do Governo, no entanto, não se trata de uma dicotomia de uma postura bem definida entre Pascal e Descarte, entre dois. Trata-se de uma segmentação maior, feita de posições que variam de forma matizada entre extremos, de diferenças e, também talvez de marcas de orientação entre os sustentabilistas e os desenvolvimentistas, sem se confundir com um nem com o outro. Isto pode ser percebido na fala do Professor Binho: A divisão entre sustentabilistas e desenvolvimentistas existe em um grau muito positivo. O que sei, hoje, aprendi com pessoas muito diferentes: com Toinho, que pode ser colocado num extremo da divisão, ou com Gilberto Siqueira, que é o outro extremo, ou com Mary Allegretti , que não se assemelha com nenhum dos dois, ou com o Governador que não se assemelha com nenhum dos três. A diversidade do Governo é muito produtiva, pois está baseada em relações muito fraternas, sem má fé, mas com grandes diferenças. Por isso, não existe um projeto consensual, existe um projeto em formação, um sonho comum para o Toinho, para o Gilberto, para a Mary e para o Jorge (entrevista realizada em 07/12/2000). 4. Continuando... A constatação da presença de desenvolvimentistas e sustentabilistas no Governo do Acre abre uma possibilidade de análise que transcende o próprio Governo estudado. Esta é uma discussão que pode ser expandida para boa parte da reflexão sobre o processo de desenvolvimento desejável para o século que estamos iniciando. Perceber com maior clareza as nuances caracterizadoras de cada posição pode ser uma boa forma de colocar em questão a própria noção de desenvolvimento sustentável e sua efetivação em forma de políticas públicas ou de ação social e ambiental de grupos privados, movimentos sociais ou organizações não-governamentais. No correr da pesquisa, este tema surge como um desafio, cujo enfrentamento exige um esforço de busca de apreensão dos desdobramentos da ação do Governo da Floresta até o final de seu segundo mandato, procurando detectar a continuidade ou não do daquele debate, a alteração ou não da posição de seus principais atores na equipe governamental e o alcance das políticas socioambientais efetivamente implementadas e seu significado tanto para as populações alvo quanto para o aprimoramento dos arranjos conceituais nelas envolvidos. Até agosto de 2004 (última etapa de trabalho de campo da pesquisa), pudemos constatar algumas alterações nas dinâmicas do Governo acreano que podem ser ajudar a avançar no estudo. A Secretaria Executiva de Floresta e Extrativismo, anunciada no início do primeiro mandato, foi convertida em Secretaria de Floresta, que compõe a Secretaria de Estado de Planejamento e Desenvolvimento Econômico-Sustentável. Segundo Luiz da Silva Pereira , a mudança no organograma do Governo foi acompanhada de alterações na política florestal e tornou a Secretaria mais distante dos agentes sociais e econômicos da floresta, frustrando expectativas criadas anteriormente (entrevista realizada em 17/08/2004). Quanto ao Zoneamento Econômico e Ecológico, apesar da conclusão rápida da primeira etapa de sua realização, em agosto de 2004 pude constatar que seus desdobramentos caminhavam lentamente, e não havia ainda perspectiva de conclusão da segunda fase. A Lei Chico Mendes, que visava garantir o subsídio direto aos seringueiros para produção de borracha, encontrou vários problemas em sua implantação, como atraso na chegada dos recursos dos subsídios para os seringueiros e demora em seu nível de abrangência territorial. Entrevistando Maria Darlene Braga Martins e João Maciel de Araújo (entrevista realizada em 24/08/2204) e Rosildo Rodrigues de Freitas (entrevista realizada em 18/08/2004) pude perceber muita crítica com relação à Lei e à sua efetividade como instrumento de garantia de remuneração à atividade extrativa, de forma a reter os seringueiros na floresta e a atrair aqueles que estão na cidade (como afirmava a justificativa da Lei). Rosildo ainda chama atenção para a pressão sobre a floresta que a atividade pecuária tem exercido no interior das Reservas Extratistas, na medida que parte dos seringueiros vêem nesta atividade a possibilidade de garantir retorno monetário mais imediato para suas atividades. Enfim, a questão da sustentabilidade das políticas governamentais do Governo da Floresta continua em aberto. Numa conjuntura nacional de retomada do crescimento econômico, as preocupações com as pressões ambientais e suas conseqüências sociais tomam novas dimensões e, no caso do Acre, exigem atenção redobrada na busca de compatibilização entre discurso oficial e práticas governamentais. BIBLIOGRAFIA ACRE. Governo do Estado do Acre. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre. Zoneamento ecológico-econômico: aspectos socioeconômicos e ocupação territorial – documento final. Rio Branco: SECTMA, 2000. V. 2. __________. Governo do Estado do Acre. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre. Zoneamento ecológico-econômico: indicativos para a gestão territorial do Acre – documento final. Rio Branco: SECTMA, 2000. V. 3. __________. Governo do Estado do Acre. Programa Estadual de Zoneamento Ecológico-Econômico do Estado do Acre. Zoneamento ecológico-econômico: recursos naturais e meio ambiente – documento final. Rio Branco: SECTMA, 2000. V. 1. 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