
Por: Marcos Vinícius Neves
OS CAMINHOS DA GUERRA
Ao chegar aos alojamentos organizados pelo SEMTA o trabalhador recebia um chapéu, um par de alparcatas, uma blusa de morim branco, uma calça de mescla azul, uma caneca, um talher, um prato, uma rede, cigarros, um salário de meio dólar por dia e a expectativa de logo embarcar para a Amazônia. Os navios do Loyd saiam dos portos nordestinos abarrotados de homens, mulheres e crianças de todas as partes do Brasil. Primeiro rumo ao Maranhão e depois para Belém, Manaus, Rio Branco e outras cidades menores onde as turmas de trabalhadores seriam entregues aos “patrões” (seringalistas) que deveriam conduzi-los até os seringais onde, finalmente, poderiam cumprir seu dever para com a Pátria.
Aparentemente tudo muito organizado. Pelo menos frente aos olhos dos americanos que estavam nos fornecendo centenas de embarcações e caminhões, toneladas de suprimentos e muito, muito, dinheiro. Tanto dinheiro que dava pra desperdiçar em mais propaganda, em erros administrativos que faziam uma pequena cidade do sertão nordestino ser inundada por um enorme carregamento de café solicitado não se sabe por quem, ou no sumiço de mais de 1.500 mulas entre São Paulo e o Acre.
Na verdade, o caminho até o eldorado amazônico era muito mais longo e difícil do que poderiam imaginar tanto americanos quanto soldados da borracha. A começar pelo medo do ataque dos submarinos alemães que se espalhava entre as famílias amontoadas a bordo dos navios do Loyd comboiados por caça-minas e aviões de guerra. Memórias marcadas por aqueles momentos em que era proibido acender fósforos ou mesmo falar. Tempos de medo que estavam só começando.
A partir do Maranhão não havia um fluxo organizado de encaminhamento de trabalhadores para os seringais. Freqüentemente era preciso esperar muito antes que as turmas tivessem oportunidade para seguir viagem. A maioria dos alojamentos que recebiam os imigrantes em transito eram verdadeiros campos de concentração onde as péssimas condições de alimentação e higiene acabavam com a saúde dos trabalhadores antes mesmo que fizessem o primeiro corte nas seringueiras.
Não que não houvesse comida. Havia, e muita. Mas era tão ruim, tão mal feita, que era comum ver as lixeiras dos alojamentos cheias enquanto as pessoas adoeciam com fome. Muitos alojamentos foram construídos em lugares infestados pela malária, febre amarela e icterícia. Surtos epidêmicos matavam dezenas de soldados da borracha e seus familiares nos pousos de Belém, Manaus e outros portos amazônicos. O atendimento médico inexistia longe das propagandas oficiais e os conflitos se espalhavam entre os soldados já quase derrotados.
A desordem era tanta que muitos abandonaram os alojamentos e passaram a perambular pelas ruas de Manaus e outras cidades buscando um modo de retornar a sua terra de origem, ou de pelo menos sobreviver. Outras tantas revoltas paralisaram os gaiolas em meio de viagem diante das alarmantes notícias sobre a vida nos seringais. Pequenos motins rapidamente abafados pelos funcionários da SNAPP ou da SAVA. Esse parecia ser então um caminho sem volta.
SOLDADOS DA FLORESTA
Os que conseguiam efetivamente chegar aos seringais depois de três ou mais meses de viagem já sabiam que suas dificuldades estavam apenas começando. Os recém chegados eram tratados como “brabos”. Aqueles que ainda não sabem cortar seringa e cuja produção no primeiro ano é sempre muito pequena. Só a partir do segundo ano de trabalho o seringueiro era considerado “manso”. Mesmo assim, desde o momento em que era escolhido e embarcado para o seringal, o brabo já começava a acumular uma divida com o patrão.
Uma divida que crescia rapidamente porque tudo que recebia era cobrado. Mantimentos, ferramentas, tigelas, roupas, armas, munição, remédios, tudo enfim era anotado na sua conta corrente. Só no fim da safra a produção da borracha de cada seringueiro era abatida do valor de sua dívida. Mas o valor de sua produção era, quase sempre, inferior a quantia devida ao patrão. E não adiantava argumentar que o valor cobrado pelas mercadorias no barracão do seringalista era cinco ou mais vezes maior do que aquele praticado nas cidades, os seringueiros eram proibidos de vender ou comprar de outro lugar. Cedo os soldados da borracha descobriam que no seringal a palavra do patrão era a lei e a lógica daquela guerra.
Os financiadores americanos insistiam que não se deveriam repetir os abusos do sistema de aviamento que caracterizaram o primeiro ciclo da borracha. Na pratica, entretanto, o contrato de trabalho assinado entre seringalista e soldado da borracha quase nunca foi respeitado. A não ser para assegurar os direitos dos seringalistas. Como no caso da clausula que impedia o seringueiro de abandonar o seringal enquanto não saldasse sua divida com o patrão, o que tornava a maioria dos seringueiros verdadeiros prisioneiros de suas colocações de seringa.
Todas as tentativas de implantação de um novo regime de trabalho, como o fornecimento de suprimentos direto aos seringueiros, fracassaram diante da pressão e poderio das casas aviadoras e dos seringalistas que dominavam secularmente o processo da produção da borracha na Amazônia.
Uma Guerra que não terminou
Mesmo com todos os problemas enfrentados (ou provocados) pelos órgãos encarregados da Batalha da Borracha cerca de 60.000 pessoas foram enviadas para os seringais amazônicos entre 1942 e 1945. Desse total quase a metade acabou morrendo em razão das péssimas condições de transporte, alojamento e alimentação durante a viagem. Como também pela absoluta falta de assistência médica, ou mesmo em função dos inúmeros problemas ou conflitos enfrentados nos seringais.
Ainda assim o crescimento da produção de borracha na Amazônia nesse período foi infinitamente menor do que o esperado. O que levou o governo norte-americano, já a partir de 1944, a transferir muitas de suas atribuições para órgãos brasileiros. E tão logo a Guerra Mundial chegou ao fim, no ano seguinte, os Estados Unidos se apressaram em cancelar todos os acordos referentes à produção de borracha amazônica. Afinal de contas, o acesso às regiões produtoras do sudeste asiático estava novamente aberto e o mercado internacional logo se normalizaria.
Era o fim da Batalha da Borracha, mas não da guerra travada pelos soldados dela. Muitos, imersos na solidão de suas colocações no interior da floresta, sequer foram avisados que a guerra tinha terminado, só vindo a descobrir isso anos depois. Alguns voltaram para suas regiões de origem como haviam partido, sem um tostão no bolso, ou pior, alquebrados e sem saúde. Outros conseguiram criar raízes na floresta e ali construir suas vidas. Poucos, muito poucos, conseguiram tirar algum proveito econômico dessa batalha incompreensível, aparentemente sem armas, sem tiros, mas com tantas vítimas.
Pelo menos uma coisa todos os soldados da borracha, sem exceção, receberam. O descaso do governo brasileiro, que os abandonou a própria sorte, apesar de todos os acordos e promessas feitos antes e durante a Batalha da Borracha. Só a partir da Constituição de 1988, mais de quarenta anos depois do fim da Guerra Mundial, os soldados da borracha passaram a receber uma pensão como reconhecimento pelo serviço prestado ao país. Uma pensão irrisória, dez vezes menor que a pensão recebida por aqueles que foram lutar na Itália. Por isso, ainda hoje, em diversas cidades brasileiras, no dia 1º de maio os soldados da borracha se reúnem para continuar a luta pelo reconhecimento de seus direitos.
Nem poderia ser diferente já que dos 20.000 brasileiros que lutaram na Itália morreram somente 454 combatentes. Enquanto que entre os quase 60.000 soldados da borracha cerca da metade morreu durante a guerra. Apesar disso, com a mesma intensidade com que os pracinhas foram recebidos triunfalmente pela sociedade brasileira, após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, os soldados da borracha foram incompreensivelmente abandonados e esquecidos, afinal de contas eram todos igualmente soldados.
Texto publicado na revista História Viva, n.8 - junho de 2004.
OBS: Disponível em http://www2.uol.com.br/pagina20/01042007/historia.htm
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