quarta-feira, 4 de abril de 2007

O “amazonismo” ou o lugar dos povos indígenas na historiografia acreana

Por: Prof° Dr. José Pimenta (UNB)
Além de reproduzir e participar da construção dos sentimentos patrióticos e nacionalistas que permitiram a “invenção do Acre” e sua incorporação ao Brasil, a historiografia oficial veiculou e continua veiculando vários mitos sobre a região amazônica e seus primeiros habitantes.
A natureza e os povos indígenas que a habitam continuam servindo de palco de projeção para os mitos ocidentais sobre a Amazônia e sua alteridade humana. Esses mitos são bem conhecidos na literatura antropológica e foram sistematizados no trabalho de Gondim (1994). O objetivo, aqui, não é detalhar a concepção ocidental sobre a Amazônia e as populações indígenas, mas apenas expor algumas de suas características, mostrando como elas aparecem na história regional e nos ajudam a pensar o lugar atribuído aos povos indígenas pela historiografia acreana.
Como o “orientalismo” de Said (1996), poderíamos definir o “amazonismo” como um conjunto de idéias e de discursos, produzidos pelo imaginário ocidental sobre a Amazônia e as populações nativas, destinado a viabilizar seus interesses políticos e econômicos. Como espaço imaginado pelo Ocidente, o “amazonismo” partilha muitas características com o “orientalismo”. Todavia, enquanto Said nos apresenta um Oriente construído de maneira negativa por um Ocidente hegemônico, o “amazonismo” constitui um campo ambíguo, catalisador de imagens e de discursos contraditórios, que podem ser mobilizados para servir interesses muito divergentes.
A concepção ocidental da alteridade enraíza-se na Grécia Antiga, momento onde se estabeleceu uma dicotomia inicial entre o “civilizado” e o “bárbaro” que serviu de modelo para a apreensão do “Outro” nos séculos seguintes.[1] Na história européia, o Renascimento foi uma época-chave de transição entre o mundo medieval e a modernidade.
O sistema copernicano e a chegada ao “Novo Mundo” questionaram profundamente a cosmografia e a cosmologia da Idade Média, baseadas num mundo fixo e ordenado pela vontade divina (Woortmann 1997a). Nesse contexto de incertezas, as primeiras informações sobre a Amazônia e seus habitantes apareceram ao mesmo tempo como a transposição de velhas imagens sobre a alteridade, atualizadas e aplicadas à nova situação, e como fonte de inspiração para novas utopias.
Primeiras testemunhas da Amazônia e de seus habitantes, os relatos de Carvajal ([1542] 1941) e de Acuña ([1641] 1941) combinaram o fantástico e o exótico e edificaram as bases do “amazonismo”: mito das Amazonas, inferno verde, Eldorado, seres canibais, nobre selvagem, etc. A Amazônia e seus primeiros habitantes concentraram e continuam concentrando todos os sentimentos e as fantasias ocidentais.[2]
Símbolo de riqueza e miséria, de medo e esperanças, de sonhos e pesadelos, de futuro e passado, de inferno e paraíso, a alteridade é o espelho invertido do Ocidente e é manipulada conforme os interesses em jogo. Essas imagens contraditórias acompanharam e informaram a conquista da América e o encontro com as populações indígenas. Além de legitimarem a ocupação e exploração econômica, os mitos também serviram a sustentar os interesses políticos e ideológicos da Europa.[3]
Guiados pelo racionalismo cartesiano, os naturalistas do século XVIII e XIX multiplicaram as expedições científicas na Amazônia e tentaram se emancipar do universo fantasmagórico e das interpretações bíblicas dos primeiros viajantes. Todavia, a Fé na ciência emergente não revoluciona o discurso europeu sobre a alteridade.
Os novos métodos mantêm os mesmos objetivos de conquista e são apenas uma outra versão do imperialismo ocidental (Pratt 1992). Assim, mesmo apontando a diversidade nativa, La Condamine, por exemplo, foi seduzido pelo fantástico, pelo mito das Amazonas e apresentou as características do “homem americano”. Inferiores ao europeu, o índio é um “homem natural” vivendo na infância da humanidade: "abandonado à natureza, privado de educação e sociedade, pouco difere das bestas" (La Condamine [1745] 1944: 45).[4] Enquanto o explorador francês ainda acreditava na civilização dos silvícolas, para Spix e Martius, que viajaram pelos rios Purus e Juruá, as populações indígenas são seres decadentes destinados a desaparecer: ...uma raça de gente que, não por orgulho, mas por indiferença e indolência, detesta todas as peias duma civilização (…), temos de inclinar-nos à conclusão de que os índios não suportam a cultura mais alta que a Europa lhes quer inocular, e que a civilização progressiva, elemento vital da humanidade florescente, mesmo os destrói, como um veneno letal, e de que eles, assim como muitos outros seres da natureza, parecem destinados a decompor-se e sair do número dos vivos, antes de terem alcançado o mais alto grau de desenvolvimento, cujo germe está neles implantado.
Consideramos, por conseguinte, os homens vermelhos, um ramo atrofiado, no tronco da humanidade, destinado a apresentar apenas tipicamente quase uma forma física de certas propriedades que fazem parte do ciclo, ao qual o homem está sujeito como criadora natural, porém incapacitados de produzir as altas flores e frutos da Humanidade. (Spix e Martius [1823-1931] 1981: 47-48) Essa separação entre cultura e natureza é uma característica estrutural do pensamento ocidental sobre a alteridade. Latour (1991) mostrou que, na Europa, a autonomia progressiva da ciência a partir do século XVI levou à afirmação da “Constituição moderna” baseada na ilusão da “Grande Divisão” entre, de um lado, as sociedades ocidentais que separaram a cultura da natureza e, de outro, as sociedades não ocidentais vivendo em “coletivos de natureza-cultura”.
A originalidade do trabalho de Latour consiste em mostrar que toda sociedade humana é um coletivo composto de cultura e natureza e que a “Grande Divisão” que funda o sistema de representações do mundo do Ocidente é ilusória. Apesar das sociedades ocidentais jamais terem sido modernas, elas continuam baseadas na ilusão dessa distinção radical entre cultura e natureza. A idéia da “Grande Divisão” latouriana também se aplicou à Amazônia e aos povos que a habitam e nos ajuda a pensar a versão acreana do “amazonismo”.
Os trabalhos antropológicos mostram que, para as sociedades indígenas, a natureza é socializada e faz parte da cultura, não existindo uma separação radical entre esses dois termos.[5] Contrariamente as sociedades ocidentais que vivem na ilusão da modernidade, podemos afirmar que os povos indígenas da Amazônia formam sociedades “não modernas” no sentido de Latour. Ora, essa ausência de modernidade é considerada, geralmente, no pensamento ocidental como uma falta de civilização.
Do mesmo modo, para o Ocidente, a Amazônia é vista, por essência, como um espaço natural, ou seja, um espaço virgem de cultura que deve ser explorado e “civilizado”. Nessa concepção, as populações indígenas se confundem com seu habitat natural. Como a Amazônia, os povos indígenas que a habitam pertencem ao reino da natureza e sua incorporação na cultura passa, necessariamente, pela obra civilizadora.
Embora inexplorados, os rios Purus e Juruá cativaram o imaginário europeu desde os primeiros séculos da conquista. A capital do Império Inca, Cuzco, foi considerada a fonte desses dois grandes rios opulentos de riquezas: ouro, salsaparrilha, plantas medicinais, tartarugas, peixes, etc. Suas margens eram o habitat natural de tribos fantásticas que protegiam seus tesouros e cuja ferocidade era temida pelos brancos: Rios enigmáticos, envoltos nas malhas da lenda, impenetráveis ao homem branco temerosos da ferocidade dos silvícolas, habitantes e guardiãs de suas margens. É que a tradição da crônica regional, desde época bastante remota, os apontava como o reino de índios bárbaros e de tesouros salomônicos.
No Purus, diz a lenda, havia índios gigantes que se enfeitavam com folhas de ouro, outros que penduravam argolas desse metal no nariz e nas orelhas. A primitiva geografia do Purus e Juruá foi uma geografia de mitos: no primeiro a nação dos gigantes, no segundo o país dos anões e dos homens caudados. (Tocantins 1979 105) Se essas imagens fazem parte da lenda da região, o ouro acreano materializou-se no leite vegetal no final do século XIX. Na historiografia do Acre, apesar do interesse apontado por alguns autores como Castello Branco (1950), a diversidade nativa se confunde, geralmente, com a natureza a ser explorada ou é apresentada como um estado primitivo de humanidade.
Antes da epopéia da borracha e da chegada dos seringueiros, a região acreana é tida como não tendo história. Alguns títulos da historiografia regional ilustram perfeitamente essa idéia: “A formação histórica do Acre” (Tocantins 1979); “O último oeste: A conquista do Acre” (Oliveira 1992), “A conquista do deserto ocidental” (Costa [1973] 1998); “Acre: Uma história em construção” (Calixto 1985).
Para a história oficial, o povo acreano é formado pelos seringueiros cuja tarefa é de domesticar a natureza e os índios que fazem parte dela. A região apresenta-se como uma “terra virgem”, um “deserto” onde o imaginário do inferno verde se mistura às esperanças do Eldorado; a “última página, ainda a escrever-se, do Gênese” nas palavras de Euclides da Cunha.
O Acre foi obra dos seringueiros, heróis anônimos, desesperadamente instalados numa região hostil mas promissora. Com audácia e bravura, o extraordinário nordestino penetrou laboriosamente a selva, desafiando a natureza e as flechas envenenadas dos “índios selvagens” para conquistar palmo a palmo o território e integrá-lo à nação. Como o bandeirante, o seringueiro deflorou a floresta e domou a natureza caótica. A terra é, naturalmente, desgraciosa e triste, porque é nova. Está em ser. Faltam-lhe à vestimenta de matas os recortes artísticos do trabalho (…). Há alguma coisa extraterrestre naquela natureza anfíbia, misto de águas e de terras, que se oculta, completamente nivelada, na sua própria grandeza.
E sente-se bem que ela permaneceria para sempre impenetrável se não se desentranhasse em preciosos produtos adquiridos de pronto sem a constância e a continuidade das culturas. As gentes que a povoam talham-se-lhe pela braveza. Não a cultivam, aformoseando-a: domam-na.
O cearense, o paraibano, os sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores empresas destes tempos. Estão amansando o deserto. E as suas almas simples, a um tempo ingênuas e heróicas, disciplinadas pelos reveses, garantem-lhe, mais que os organismos robustos, o triunfo na campanha formidável. (Cunha [1909]1998: 88-89) De forma semelhante, o seringueiro civilizou o índio. No momento da conquista do Acre, as populações indígenas são vistas como um obstáculo à exploração da borracha. Quando é apontada pelos autores, a presença nativa é apenas considerada como um freio suplementar ao avanço inevitável e benfeitor do “Progresso” e da “Civilização”.
Para os índios, o contato com os seringueiros traduziu-se numa forte queda populacional e na extinção de vários grupos. Se os povos mais vigorosos resistiram corajosamente à conquista de seus territórios, seus atos reforçam geralmente a grandeza e o heroísmo dos colonizadores.
A diversidade das sociedades indígenas e a riqueza de suas culturas são geralmente ocultada ou mencionada en passant.[6] Os índios em si não atuam diretamente na “invenção” do Acre. Mesmo quando considerados humanos, os povos indígenas continuam fazendo parte da natureza. Com a chegada dos seringueiros, os povos “sem história” se tornaram apenas objeto de uma história que se constrói sem eles ou sobre eles, raramente com eles.
Mal inevitável mas superável, o destino do índio é a “civilização” ou o extermínio e uma dicotomia se estabelece rapidamente entre o índio “civilizado” ou “manso” e o índio “brabo”. Enquanto os “mansos” integram o cativeiro do seringal na categoria generica de “caboclo”, os “brabos”, após serem massacrado e perder suas terras são integrados à cultura local como folclore ou símbolo da gloriosa conquista do povo seringueiro.[7]
Nas últimas décadas, o desenvolvimento dos estudos de arqueologia e de etnohistória contribuíram fortemente para rever a imagem da Amazônia como uma “terra virgem”, ou exclusivamente habitada por pequenos grupos isolados, e mostraram a amplitude do genocídio das populações nativas desde os primeiros séculos da conquista européia.[8]
Como a Amazônia de uma maneira geral, o Acre era o habitat de uma grande diversidade de povos. Segundo Calixto (1985: 16), cerca de 60 mil índios representando uns 50 grupos étnicos viviam na região acreana no início do século XIX. As correrias organizadas pelos seringueiros brasileiros contra os índios foram freqüentemente subestimadas pelos historiadores brasileiros que atribuem geralmente as mortes maciças de nativos aos caucheiros peruanos.
Dizimados pelos massacres e as doenças, muitos grupos foram extintos, outros encontraram refúgio nas cabeceiras dos rios, a maior parte de contingente nativo foi, no entanto, incorporada à economia extrativista da borracha, vivendo sob domínio dos patrões brancos até a década de 1980.
Como seringueiros, para a história oficial, os índios do Acre se dissolvem na categoria genérica de “caboclo”. Como mostrou Cardoso de Oliveira no seu trabalho com os índios Tikuna do Amazonas, a identidade “caboclo” é essencialmente uma identidade negativa imposta pelos brancos e incorporada pelos índios (Cardoso de Oliveira 1976: 14-20; 1981:77-96).
Se ele se distingue do “brabo”- o índio “selvagem” com traços animalescos-, o “caboclo” acreano é caracterizado por um conjunto de atributos negativos (ladrão, preguiçoso, traidor, etc.) que marcam sua inferioridade em relação ao branco (Valle de Aquino 1977).
Mesmo “civilizados” ou “amansados”, através da imagem do “caboclo”, os índios continuam considerados como representantes de uma sub-humanidade. Nos seringais, muitas populações indígenas sobreviventes partilharam um destino funesto com os seringueiros nordestinos, seus inimigos históricos. Na condição de mão de obra servil no sistema escravista e paternalista da borracha, os índios acreanos reprimiram durante décadas sua identidade étnica e continuaram sofrendo os preconceitos da sociedade envolvente.
De uma maneira geral, considerando o lugar atribuído ao índio pela historiografia acreana, podemos dizer que a “questão indígena” foi um detalhe na conquista e na integração do Acre ao Brasil. Exterminados, “civilizados” ou isolados em áreas remotas, cujas riquezas ainda não haviam sido cobiçadas, durante a maior parte do século XX, os povos indígenas acreanos desapareceram de uma história oficial que nunca os considerou como atores.
Símbolo dessa invisibilidade da questão indígena, a FUNAI começa a atuar realmente na região apenas em 1975. Até essa data, as raras viagens de funcionários do SPI, ligados à Ia Inspetoria Regional de Manaus, legitimaram os patrões seringalistas e alguns políticos locais como representantes do órgão. Até à intensificação das políticas desenvolvimentistas a partir da década de 1970, as instituições governamentais e importantes segmentos da sociedade acreana desconheciam a existência de populações indígenas no Estado (Valle de Aquino e Iglesias 1999: 6).
....... [1] Ver por exemplo Bartra (1994) e Woortmann (1997b) [2] O caso dos índios Yanomami talvez seja o mais ilustrativo. O discurso exotizante construído sobre esse povo indígena percorre os séculos e é um exemplo revelador das contradições e ambigüidades do imaginário ocidental sobre a alteridade (Smiljanic 1995). [3] Melo Franco ([1937] 1976) lembra, por exemplo, o uso das imagens do “Nobre Selvagem” por alguns filósofos como Montaigne ou Rousseau para caracterizar uma sociedade mais justa e o novo ideal da Revolução Francesa. [4] Essa concepção dos índios como “homens naturais” também se encontra na obra do naturalista português Alexandre Rodrigues Ferreira ([1783-92] 1974). [5] Sobre as relações entre as populações indígenas e a natureza, ver por exemplo a etnografia de Descola (1986) sobre os Achuar (Jívaros) da Amazônia equatoriana. [6] Apesar de sua obra conter vários estereótipos sobre os povos indígenas acreanos e participar da construção do “amazonismo”, cabe notar o interesse de Castello Branco (1950) em apresentar a diversidade nativa da região. [7] Caso dos Nauá (ou Nawá), por exemplo, cuja história é fascinante. Esse grupo da família etnolingüística Pano vivia nas proximidades da atual cidade de Cruzeiro do Sul, também conhecida localmente como “a Terra dos Nauá”. Valorosos guerreiros, os Nauá resistiram com as armas à penetração dos seringueiros até seu “extermínio oficial” que aconteceu, segundo a historiografia regional, no final do século XIX e início do século XX. Durante as décadas que seguiram o “extermínio” desse povo indígena, a sociedade cruzeirense fez do nome “Nauá” um símbolo da cultura e da identidade local. Existe, hoje, em Cruzeiro do Sul, o teatro dos Nauá, o café nauá, o guaraná nauense, etc. Imprevisto e ironia de uma história mal contada, depois de um século de silêncio, os Nauá “reapareceram” no ano 2000 no Parque Nacional da Serra do Divisor! Exemplo acreano de povo indígena “remanescente”, a presença dos Nauá vivos, que reivindicam hoje a demarcação de suas terras do órgão indigenista, causa muitas polêmicas envolvendo vários atores: FUNAI, IBAMA, CIMI, ecologistas (S.O.S. Amazônia), antropólogos, políticos, etc. Sobre esse assunto, ver as matérias “Grande surpresa no final do século: reaparecem os índios Nauá” (Jornal Voz do Norte, edição semanal de 11 a 18 de agosto de 2000, página 11) e “Resquícios de uma civilização” (Jornal Página 20, edição de 16 de agosto de 2000, página 7). [8] Ver, por exemplo, Roosevelt (1993) ou Porro (1996).

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