segunda-feira, 16 de abril de 2007

SOBRE A MINISSÉRIE DA GLOBO

Por: Marcos Vinícius Neves Entre a história e a ficção
Muito se falou, escreveu e discutiu sobre a minissérie “Amazônia...” nas últimas semanas. As opiniões variaram bastante, desde os que adoraram até os que odiaram. Até aí tudo normal. Entretanto, em relação a alguns aspectos as críticas foram exacerbadas, enquanto em relação a outros nada se falou. Cabe então perguntar: entre um extremo e outro, o que fica disso tudo? De todas as características de que se revestiu a minissérie “Amazônia: de Galvez a Chico Mendes”, talvez a primeira e mais importante a ser considerada seja sua configuração como uma obra mista, meio ficcional, meio histórica. Por diversas vezes, durante a produção, ouvi a bendita frase: “Isso não é um documentário”. Pra minha cabeça de historiador, confesso que às vezes foi muito difícil conviver com a tal da “licença poética”. Apesar de que, tenho que confessar, eu mesmo gosto muito de vez em quando usar os recursos da ficção para contar histórias das quais se sabe muito pouco (sempre ressaltando o caráter ficcional dos textos, é claro). E a pratica revela que é muito mais fácil escrever ficção do que história. Ao simplesmente criar uma história, ficamos livres para imaginar qualquer coisa, pra desenhar personagens com as características necessárias pro desenrolar da trama que se quer contar, pra desenhar enredos verossímeis ou não.
Tratar da história é diferente. Requer muita pesquisa, implica em mergulhar em um universo onde a especulação é apenas um recurso para estabelecer perguntas, mas que não serve para respondê-las. É se sujeitar a um percurso que muitas vezes não depende da vontade do pesquisador, mas é determinada pela disponibilidade de fontes ou da consciência histórica de uma dada comunidade ou sociedade. E, é preciso admitir, frequentemente somos levados a constatações que contrariam o que acreditávamos no inicio do trabalho de pesquisa. Ou dito de outra forma, consigo escrever apenas uma página por hora quando o assunto é história, ao passo que as páginas fluem muito mais rapidamente quando me dedico à ficção. Essas questões nos ajudam a compreender um pouco melhor a trajetória percorrida durante a produção da minissérie em suas diversas fases, desde a pré-produção e construção de cenários, passando pela caracterização dos personagens e chegando à própria composição do roteiro final que foi gravado e levado ao ar.
Por exemplo, a área escolhida para a locação da cidade cenográfica de Puerto Alonso/Porto Acre é bem semelhante à condição geográfica da área em que essa cidade real foi fundada por bolivianos em 02 de janeiro de 1899. Entretanto a disposição dos cenários (prédios, torres, trincheiras e escadas) não possui relação direta com a situação da cidade histórica. Enquanto esta estava quase toda situada no alto do platô, a cidade cenográfica foi construída no barranco para se tornar mais “cênica”.
O mesmo pode ser dito em relação ao Palácio do Galvez que vimos na tela da televisão. Pelos poucos relatos históricos que chegaram até nós a coisa mais grandiosa do “Palácio” que Galvez mandou erguer para servir de sede ao seu governo era uma escadaria de seis degraus em alvenaria. Já na minissérie o palácio era realmente grandioso misturando elementos amazônicos e mouriscos (dada a origem espanhola de Galvez) numa livre interpretação cheia de referencias históricas, mas sem o rigor de uma reconstituição fiel. È preciso lembrar que para termos um espetáculo dramático são necessários elementos espetaculares e essa lógica norteou muitas decisões ao longo de toda a produção.
O mesmo pode ser considerado em relação aos personagens e as tramas que permearam toda a minissérie. Tivemos nesse campo uma mistura de personagens reais e outros criados pela imaginação da escritora ou adaptados das fontes consultadas por ela. O caso mais agudo dessa mistura talvez tenha sido o do núcleo familiar que agrupou o valente nordestino Bastião, sua mulher Angelina Gonçalves e seus filhos Delzuite e Bento. Enquanto Bastião evidentemente correspondia ao personagem Chico Bento do romance Terra caída de José Potiguara, com toda sua rudeza, honestidade e coragem, Angelina é um personagem histórico muito caro à sociedade acreana. Foi essa mulher que de fato enfrentou os bolivianos após o assassinato de seu marido na seqüência do primeiro combate da Volta da Empreza no qual Plácido de Castro foi derrotado pelos militares bolivianos em setembro de 1902.
E a minissérie contextualizou corretamente essa passagem da vida de Angelina. Apesar de que durante a produção da minissérie surgiram novas informações e documentos que realçaram ainda mais a participação de Angelina durante diversos episódios da Revolução Acreana e não apenas naquele descrito acima. Infelizmente essas novas informações não puderam ser aproveitadas na trama escrita por Glória Perez.
Quanto a Delzuite e Bento foram dois personagens criados livremente pela autora (salvo engano meu). Assim foi possível dar vazão através deles de histórias como a do “Boto” que serviu de álibi para o filho do coronel que ilude a ingênua filha do seringueiro. Enquanto que Bento acabou se constituindo no personagem mais importante de toda a minissérie. Ele foi o “Forrest Gump” de “Amazônia”, a testemunha ocular de todas as fases da história do Acre. A criança que migrou do nordeste para a Amazônia no final do século XIX, o jovem que serviu a Galvez e lutou ao lado de Plácido de Castro, o homem que testemunhou o drama dos soldados da borracha nos anos 40 e já velho foi companheiro de Wilson Pinheiro e Chico Mendes nos anos 70 e 80.
Um personagem secular que só a força da ficção seria capaz de salvar da morte ou da decrepitude da velhice. Mas mesmo com toda “licença poética” indispensável para engendrar tal possibilidade, um personagem necessário para interligar as três fases históricas percorridas pela minissérie.
A partir destas considerações iniciais podemos tirar algumas conclusões. É verdade que a ficção acabou de alguma forma limitando a história. Concordo com os que pensam que a primeira fase se estendeu demais, em especial graças à ênfase que o núcleo do cabaré da Lola acabou tendo em detrimento de outros núcleos da mesma fase. A autora perdeu tempo demais com personagens que contribuíram muito pouco pra trama como um todo (em que pese a beleza das atrizes desse núcleo).
Por outro lado, discordo radicalmente daqueles que procuraram caracterizar o tom geral da minissérie apenas pela presença de mulheres “degeneradas” na primeira fase. É preciso levar em consideração que esta fase da minissérie se passava entre o final do século XIX e início do século XX. Um período em que qualquer mulher que tentasse pensar ou expressar sua opinião era facilmente classificada como meretriz.
Não é de estranhar, portanto, que mulheres que ousassem contrariar o desejo de seus pais ou as normas da sociedade acabassem num cabaré como ocorreu com a Delzuite. Essa era uma realidade que não dizia respeito ao Acre, mas a própria sociedade ocidental da época, não havendo motivos pra pensar que abordar essa temática tenha colaborado para denegrir o passado acreano.
Pelo contrário, as cenas que vimos na TV deveriam ter levado à reflexão acerca das dificuldades que foram enfrentadas por mulheres de todos os tipos (em especial aquelas das camadas mais populares) em sua trajetória rumo à igualdade de direitos entre os gêneros. Uma conquista que na realidade é muito recente, com pouco mais de três décadas e nem sequer chegou a muitos cantões desse planeta tão problemático e desigual. Portanto, acho que a insistência no moralismo sob o qual foram analisadas as personagens femininas da primeira fase da minissérie, na pratica obscureceu uma excepcional possibilidade de nos encantarmos com a força dessas mulheres que ao longo da história sacrificaram suas trajetórias pessoais em nome de uma luta desigual.
Outra questão diz respeito aos avanços e lacunas da reconstituição histórica empreendida nesta produção. Pelo menos três elementos importantes merecem ser destacados como pontos positivos da minissérie. O primeiro diz respeito à reabilitação histórica da figura de Luis Galvez Rodrigues de Arias. Desde 1999 vínhamos retrabalhando esse personagem na tentativa de modificar o enorme prejuízo causado pelo monopólio do livro “Galvez, o Imperador do Acre”, na historiografia brasileira e acreana.
O Galvez ficcional (é importante que se enfatize) criado por Marcio Souza não passava de um bêbado irresponsável sem nenhum outro objetivo na vida que não fosse sexual ou financeiro. Ao passo que a experiência histórica acreana indicava um outro contorno para esse personagem. Uma configuração mais idealista, aventureira, quixotesca até, mas muito mais relevante do que daquele outro Galvez. Pois bem, como já disse, desde 1999 tentamos essa reabilitação histórica, o que pode ser facilmente constatado na revista “Galvez e a Republica do Acre” publicada pelo governo do estado naquele ano. Mas como santo de casa não costuma fazer milagre, quero crer que essa minissérie tenha dado uma efetiva e fundamental colaboração para uma nova compreensão do papel de Galvez na história acreana e brasileira.
O segundo aspecto positivo da minissérie foi a interligação das diversas fases históricas pelas quais passou a sociedade acreana, numa seqüência de acontecimentos reveladora de um sentido preciso. A história de lutas do povo acreano foi, portanto, evidenciada admiravelmente ao longo da minissérie. Uma luta que passou por diferentes momentos e condições, mas que resultou na caracterização do Acre como um espaço de resistência e conquista de direitos apesar de toda a opressão política e econômica a qual foi submetido ao longo do último século e meio. E em terceiro lugar penso ter sido muito positiva a aparição de alguns personagens populares e manifestações culturais características do Acre na minissérie. Personagens como Padre José (mesmo estando situado em um tempo distinto do real), Juvenal Antunes e Raimundo Doido que deram um colorido muito especial a toda a trama. O mesmo vale para cenas que retrataram os bailes dos seringais (incluindo os bailes das quatro bolas), a malhação do Judas (como descrito por Euclides da Cunha em seu famoso texto Judas Asvero), a aplicação da vacina do sapo Kambô, a Marujada e o mais recente Jabuti Bumbá.
Esses personagens e acontecimentos junto a um linguajar muito próximo daquele efetivamente praticado no Acre revelaram claramente a vantagem de uma minissérie escrita por uma autentica escritora acreana.
Mas não posso deixar de destacar ainda a importância da presença de Mestre Raimundo Irineu Serra na minissérie. O respeito e fidedignidade com que esse assunto foi abordado puseram em evidencia o necessário reconhecimento de um homem simples que em sua vasta sabedoria foi capaz de criar uma das principais tradições socioculturais do Acre: a doutrina do Daime. Uma nova religião que traz em si uma síntese original das contribuições indígenas, africanas e européias (nessa ordem mesmo) na formação de nossa sociedade e que ainda precisa ser melhor conhecida e compreendida para vencer os preconceitos a que continua submetida, em que pese os extraordinários avanços obtidos nos últimos anos.
Nesta linha de raciocínio devemos também destacar como pontos negativos da minissérie a ausência de outros personagens muito importantes da história acreana, como Euclides da Cunha, para citar apenas um exemplo. Mas principalmente a lacuna deixada pela ausência do movimento autonomista em suas várias etapas na minissérie. Não abordar a revolta autonomista de Cruzeiro do Sul em 1910, ou a importância da Legião Autonomista nos anos 30 e do Comitê Pró-autonomia dos anos 50 nos fez perder uma excepcional oportunidade de trazer esses episódios ao conhecimento das mais novas gerações de acreanos. O que é lamentável, mesmo compreendendo a impossibilidade de uma produção desse tipo abordar todos os aspectos e personagens mais importantes da história acreana.
Para terminar essa breve e despretensiosa avaliação (que um dia mereceria ser mais aprofundada) devo ressaltar a participação de muitos atores, atrizes e figurantes acreanos nas gravações. Foram centenas de figurantes na encenação dos combates da Revolução, diversos atores e atrizes no elenco de apoio da minissérie, sem deixar de lembrar da Karla Martins, Clarisse Batista e Brenda Hadad que representaram os acreanos com grande brilho e competência. Enfim, não resta duvida que a minissérie deixou, entre outras coisas, uma grande contribuição à tomada de consciência dos brasileiros em relação às especificidades sociais, culturais e históricas do Acre e da Amazônia. Além de ter sido muito legal ver jovens acreanos perguntando aos mais velhos se as coisas eram assim mesmo nos seringais e nas histórias de suas vidas. Um grande encontro de gerações que espero tenha fortalecido ainda mais a paixão que os acreanos sentem por sua história, mas isso só o tempo poderá revelar por completo.

Nenhum comentário: