terça-feira, 11 de outubro de 2011

Chico Mendes, patrono do “capitalismo verde”?

Israel Souza[1]
Talvez não haja, no panteão do ambientalismo, personalidade mais cultuada que Chico Mendes. Sua imagem é facilmente encontrada em camisas, cartazes, propagandas etc. Desde sua morte, o seringueiro acreano foi transformado em herói nacional e internacional. Postumamente ganhou inúmeros prêmios por sua luta em “favor da Amazônia”. Infelizmente, a difusão de sua figura não encontra paralelo na concreção de seus ideais. Diríamos mesmo que tal difusão se faz em detrimento de seus ideais. A esse respeito, o modelo de desenvolvimento que, em seu nome, implantaram no Acre é exemplar.
Há um forte consenso segundo o qual desde 1999, com a eleição do governo da Frente Popular do Acre (FPA), foram tomadas iniciativas relevantes para a indução de um “novo modelo” de desenvolvimento no estado: o chamado “desenvolvimento sustentável”. Caminhado para o 13° ano à frente do poder estatal, os atuais governantes defendem que teríamos aí a virtuosa união entre as agendas ambiental, social e econômica. Criaram até um termo que pudesse dar conta disso: Florestania.
Segundo dizem os gestores estatais, seria possível alcançar o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, preservar a floresta e o modo de vida de seus habitantes. Se perguntados de onde lhes vêm a inspiração para tal política, eles não titubeiam: “Chico Mendes”, dizem. Colocam-se como herdeiros únicos do líder seringueiro.  E apoiados por organismos e organizações internacionais (como BID, BM, ITTO etc.) ONGs alinhadas com o “capitalismo verde” (WWF, de modo destacado), imprensa do Acre e de outras latitudes, oligarquias locais, madeireiras, empreiteiras etc., apresentam o Acre como exemplo a ser seguido no Brasil e no mundo.
Reservas Extrativistas
A verdade é, porém, que o modelo apresentado como referência está longe de ser virtuoso. Suas contradições estão mais que expostas. No caso da Floresta Estadual do Antimary - uma espécie de vitrine do modelo -, ficou clara a intenção dos gestores estatais fazerem do manejo uma prática voltada exclusivamente para a exploração de madeira. Ali nem mesmo as regras do “manejo sustentável” (já bastante plásticas e tendenciosas para favorecer amplamente as madeireiras) são respeitadas.
Moradores daquela área relatam a exploração de árvores ainda não “aptas para o corte” (novas). Falam ainda que houve exploração de árvores que estavam fora da área destinada ao manejo. Afirmam categoricamente que os gestores estatais sabiam das “irregularidades” e faziam de tudo para “encobrir”.
No Projeto de Assentamento Agroextrativista Chico Mendes Cachoeira (em Xapuri) há denúncias idênticas. E o desrespeito à natureza e aos habitantes da região é uma constante. Há quem fale de igarapés secando, de caça sumindo. Somado às dificuldades que as leis ambientais impõem aos moradores no que diz respeito a “pôr o roçado para plantar”, isso representa a fome para muitos.           
Sob constante pressão, os moradores dizem que não podem cortar sequer uma única árvore, seja para o que for. Ouvimos casos de quem, por cortar uma árvore apenas, recebeu uma multa cujo valor excede o de sua propriedade. Já as madeireiras beneficiadas com o manejo ficam livres para desrespeitar até as regras que deveriam regular sua atuação. E há quem ainda defenda o manejo como “a única saída para o Acre”. Tenho certeza que é assim que empresas como a Lamindos Triunfo pensam. 
A questão indígena
 E as coisas podem piorar ainda mais.  No final de 2008, o Estado do Acre, através do Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Acre (ProAcre), firmou contrato de 150 milhões com o BM - 120 milhões do banco e 30 milhões de contrapartida local. Com previsão de duração de seis anos, o programa tem como foco de ação as margens das BR 364 e 317 (tratadas, agora, como Zonas Especiais de Desenvolvimento - ZEDs) e pretende “melhorar a qualidade de vida das comunidades mais distantes dos centros urbanos, levando-lhes saúde, educação e produção” - coisa necessária louvável. Mas, não casualmente, o programa pretende também promover o “ordenamento ou adequação para o desenvolvimento sustentável, especialmente dentro de Unidades de Conservação, Terras Indígenas (TIs) e projetos de assentamento” - coisa discutível e perigosa. Isso significa que o manejo poderá ser realizado também nas TIs.
Vale dizer que, durante os governos da FPA, o processo de homologação de Tis foi paralisado. Mesmo sem alcançar segurança jurídica em suas terras, agora os índios podem enfrentar problemas similares aos dos moradores das Reservas Extrativas relatados acima. Somemos a isso os inexistentes ou precários serviços de saúde e educação que o Estado lhes oferece ou nega. Sobre a saúde convém lembrar que, recentemente, os indígenas terminaram uma ocupação que durou mais de 8 meses na Funasa. Eles denunciavam a precariedade - e, em alguns lugares, a inexistência - do serviço de saúde, bem como apontavam para o desvio de verbas. Nada conseguiram com a ocupação. O governo os ignorou e a imprensa, zelando pelos interesses do governo, pouco falou sobre o caso.
É assim que o Estado apresenta a realidade indígena em suas propagandas.
Realizando uma pesquisa nos arquivos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) é possível ter outra visão. As quatro primeiras fotos a seguir mostram as condições de algumas escolas indígenas no estado. As demais mostram a situação de alguns índios que, expulsos de suas terras por fazendeiros, foram viver às margens do rio, no município de Sena Madureira.
As fotos mostram que no Acre a questão indígena tem um “lado A” e um “lado B”. O lado A existe e é ele que serve para propagandear o suposto êxito da política do desenvolvimento do Estado. Mas é ínfimo se comparado às condições gerais dos indígenas nestas paragens.  
Pan-mercantilização e privatização da natureza e espoliação das populações locais
Na verdade o que temos no Acre é um acelerado processo de pan-mercantilização e privatização da natureza e espoliação das populações locais. Um dos últimos passos dado nesse sentido foi a aprovação da Lei N° 2.308, de 22 de outubro de 2010, que regulamenta o Sistema Estadual de Incentivo a Serviços Ambientais. Por esta lei - que foi criada sem amparo constitucional e sem o devido debate com a sociedade -, a beleza natural, os valores espirituais, os saberes tradicionais, imaginário popular, animais, água, plantas e até o próprio ar, tudo passa a ser mercadoria e, portanto, sujeito às leis do mercado e à lógica do capital.
Manipular a figura de Chico Mendes serve, neste processo, para legitimar essa ordem de coisas. Devemos isso, sobretudo, a Tião Viana (ex-senador e atual governador do estado) e a seu irmão, Jorge Viana (ex-governador e atual senador), e a Marina Silva (ex-senadora e ex-ministra do meio ambiente).
Nada mais se fala sobre reforma agrária e gestão autônoma dos territórios por parte das populações locais. Tudo se passa como se a questão fundiária estivesse, definitivamente, resolvida no estado. Por outro lado, seguem com a exploração madeireira em larga escala, a exploração de petróleo, o monocultivo de cana-de-açúcar e ampliação da pecuária extensiva de corte. Por este prisma, somos levados a crer que Chico Mendes seria assim uma espécie de patrono do capitalismo verde, isto é, deste capitalismo que lança mão do discurso ambiental não para proteger a natureza mas para submetê-la aos imperativos do mercado.
Um fantasma ronda o Acre. Chico vive!
Convertido pela FPA em laboratório do BM e do BID para experimentos de mercantilização e privatização da natureza, hoje o Acre é um estado de discurso verde e prática cinza. Mas os questionamentos ao modelo, vindos do seio da floresta e da cidade, mostram que os ideais de Chico Mendes continuam vivos. Embora poderosos, o governo e seus aliados têm cada vez mais dificuldades para contê-los.
Parece abrir-se um novo momento na história... Um fantasma ronda o Acre. Chico vive. Mas não nos escritórios das madeireiras. Tampouco nos gabinetes governamentais e das ONGs. É na luta das classes subalternas e insubmissas que o seringueiro socialista vive...
 

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