Este livro é o
resultado de releituras da minha dissertação de mestrado, defendida no programa
de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Acre, em 2008, na qual
foram acrescentadas algumas discussões e excluídas outras. A minha proposta
inicial era analisar a versão epopeica da história do Acre, divulgada pelo
governo do Estado, durante as comemorações cívicas do centenário da Revolução
Acriana. No entanto, o meu posterior ingresso nos estudos em Análise do
Discurso obrigou-me a alterar quase que completamente minha proposta inicial.
Dentre os muitos livros
que li durante o mestrado, os que mais me influenciaram foram os da linguista
Eni Orlandi, dois em especial, a saber: Discurso
Fundador: a formação do país e a construção da identidade nacional (1993) e
Terra à Vista! Discurso do Confronto (1990).
Nestes livros ela trata de temas próprios do campo da história, no entanto, utiliza
ferramentas linguísticas para isso. Foi então que adotei o conceito de
“discurso fundador” e modifiquei o título da minha pesquisa para O Discurso Fundador do Acre nas comemorações
oficiais do Centenário da Revolução Acreana (1999-2003).
Como historiador, eu já
havia tido contato com o conceito de “mito fundador”, utilizado pela filósofa
Marilena Chauí (2000), no entanto, considerei-o inadequado para o propósito que
eu almejava. Primeiramente porque aproximaria o meu estudo da antropologia;
além disso, eu não tratava com explicações “irracionais” ou “lendárias” do
passado; e também porque o meu interesse não era verificar como “algo
imaginário”, fixado como origem, atualizava-se no tempo presente, nem mostrar
como as tensões sociais de uma época foram dissimuladas em narrativas
históricas.
O que eu queria mesmo
era estudar a produção, a circulação e a recepção de sentidos na escrita da
história. Por isso, a ideia de “discurso fundador” pareceu-me mais convincente.
No entanto, eu ainda era um neófito nos estudos linguísticos, e considerava possível
transportar um discurso de uma certa temporalidade para outra sem que ele
sofresse “deslizes” de sentido. É por isso que, na época, o meu objetivo se
limitava em identificar as marcas interdiscursivas existentes entre a narrativa
sobre a origem do Acre, divulgada pelo governo da Frente Popular durante as
comemorações cívicas do Centenário da Revolução Acriana (1999-2003) e aquela que
significou o Acre como brasileiro no final do século XIX e início do século XX.
Eu ainda não me havia dado
conta de que as condições de produção dos discursos são determinantes na
significação deles e que, por isso, as movências de sentido seriam inevitáveis.
Apesar de ambos os discursos – os do final do século XIX e os do início do
século XX – adotarem a mesma versão épica da origem do Acre, isso não queria
dizer que o último seria a mera reprodução do primeiro. Tivemos que deixar de
lado a pretensão de estudar a circulação do discurso fundador nas comemorações
cívicas do Centenário e limitar nossas reflexões apenas às condições de
emergência do discurso fundador do Acre propriamente dito. Por conta disso, o título
final da dissertação ficou O discurso
fundador do Acre: heroísmo e patriotismo no último oeste.
Após estudarmos dezenas
de materialidades discursivas da época do processo de nacionalização do
território que ficou conhecido como Acre, verificamos que dois foram os
princípios de regularidades enunciativas que sustentavam a versão epopeica: o heroísmo e o patriotismo dos primeiros acreanos. A partir de então,
procuramos compreender por que esses princípios emergiram e tornaram-se recorrentes
nos discursos da época. Para tanto, utilizamos o método de “descrição
arqueológica” praticada por Michel Foucault (2005).
Para contextualizar as condições em que escrevi a primeira versão deste
livro, destaco que, em 2006, eu era um historiador que realizava um mestrado na
área de Letras e que, ao iniciar a escrita da dissertação, estava muito preso
aos debates marxistas (a “única” coisa que os professores da graduação em
História se esforçavam em ensinar). Por isso, por necessidade pessoal, por
questão de consciência acadêmica e como ato de renúncia à “herança” teórica que
havia adquirido, resolvi escrever uma síntese dos pressupostos da Análise do Discurso
(AD) e também do debate que existia em torno da ideia de “discurso fundador”
(DF). O texto sobre AD serviu como um esboço para a redação de um outro livro
que pretendo publicar ainda neste ano com o título Linguística para historiadores e cientistas sociais: uma introdução à
Análise do Discurso. Já o texto sobre DF tornou-se o primeiro capítulo
deste livro.
O segundo capítulo deste livro equivale ao terceiro da dissertação, mas totalmente
reformulado e acrescido de novos textos. Nele, tratamos da emergência dos
discursos que significaram a região do Juruá e Purus como estrangeira
(boliviano e peruano) e brasileira (amazonense e acriano). Também analisamos os
discursos que trataram a “Revolução Acriana” como um acontecimento fundador do
Acre(ano) e aqueles que significaram tal origem como gloriosa. O terceiro
capítulo foi escrito tomando por base o quarto capítulo da dissertação. Nele,
procuramos compreender a emergência discursiva dos dois principais traços da
identidade acriana: o heroísmo e o patriotismo.
A imagem do afresco A Criação de
Adão (1508-10) de Michelangelo Buonarotti (1475-1564), utilizada na capa
deste livro, representa o episódio da criação do primeiro homem por Deus,
descrito no livro de Gênesis, o primeiro da bíblia. Inserimos a bandeira do
Acre entre o dedo de Deus e o dedo de Adão como forma de ironizar a história do
Acre, que supõe a criação desse povo como fruto da realização de heróis. Desde
o primeiro livro venho questionando essa história epopeica do Acre e venho
recebendo muitas críticas e até acusações desrespeitosas, tudo isso porque
ousei questionar uma narrativa “sagrada”.
O Acre não foi uma dádiva dos deuses. Ele não surgiu das mãos do Criador,
portanto, a sua origem não deve ser entendida como um espetáculo do Gênesis. O
que eu fiz nesses quatro livros que publiquei foi, simplesmente, revelar “os
pecados” daqueles que fizeram a história do Acre e a manipulação
“beatificadora” daqueles que a escreveram. Por conta disso, é possível que um
dia eu seja mais reconhecido como um analista de discurso do que como um historiador
propriamente dito.
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