PERIÓDICO: PORTO ACRE – Orgam
do Partido Constructor Acreano
DATA: Anno II – 21 de Junho
de 1914 – Nº 33
LOCAL: Porto Acre –
Departamento do Alto Acre
Pág.: - Col.:
LUIZ GALVEZ
Figuras
há, de tão características e impressionantes, que vistas uma vez, mesmo de
relance, ficam-nos impressas
indelevelmente na imaginação, e jamais o tempo consegue varre-las de nossa
memória; outras, de tão comuns e desinteressantes, por mais que se procure
reter-lhes as fisionomias, após mesmo acurado convívio, evaporam-se à primeira
ausência, confundindo-se com a vulgaridade de tantas outras que ai passam, sem
deixar um traço, uma lembrança, um ponto de reconhecimento.
Luiz
Galvez, o inditoso aventureiro hespanhol que proclamou o Estado Independente do
Acre, a 14 de Junho de 1899, era dos que, uma vez vistos, jamais serão
esquecidos.
Foi
em dezembro daquele ano tumultuoso, que o vi pela primeira vez, a bordo de uma
lancha armada em guerra, a que a sua fidalga fantasia guerreira dera o pomposo
nome de Aviso Liberdade. Nella elle surgia com o seu cortejo faltoso, em viagem
de propaganda revolucionaria, à povoação de Xapury, ate então indecisa na sua
adesão à causa dos revoltosos contra os bolivianos, já expulsos do Acre desde o
primeiro de Maio.
A
ação do governo constituinte em julho sob a presidência de Galvez, ficara
circunscrita ao baixo Acre, dominando pacificamente, sem inimigos a combater na
região, senão simplesmente adversários, brasileiros que se tinham aliados aos
invasores, autoridades destituídas em virtude da rebelião, entre os quais, o
mais poderoso deles, o Capitão Antonio Leite Barbosa, impenitente e insubmisso,
e conspirava dentro de seus grandes seringais Humaytá e Curuparity.
O
verão fora longo e seco naquele ano memorável para a historia do povo acreano,
e as comunicações com o alto Acre, cada dia mais difíceis desde Junho, iam-se
cortando definitivamente, deixando-nos isolados do mundo, naquela longingua
região inhospita, onde a vida seria um sacrifício, si na intimidade de um
pequeno núcleo de familisa que compartilhavam das agruras da terra, não
encontrássemos as doçuras de carinhoso e fraternal acolhimento.
Vagamente,
por vias desconhecidas, chegavam a Xapury as noticias da agitação reinante, mas
os boatos, sempre alarmantes e contraditórios, surgiam não se sabia como,
levados boca à boca, pelo interior dos seringais e enchiam a população de
terrores e sobressaltos.
Na
incerteza do que se passava no theatro dos acontecimentos, mal sabendo que já
não havia bolivianos no Acre, tínhamos resistido a toda sedução revolucionaria.
Nem acreditamos na seriedade dos promotores do levante, desconhecido que nos
era o estrangeiro que o chefiava, nem tão pouco confiamos na possibilidade da
Victoria, que bem sabimos a falência de recursos em que cairíamos, se o comercio
aviador, justamente alarmado, não nos mandasse as suas mercadorias.
Continuávamos brasileiros, abrigados obstinadamente sob a bandeira da pátria,
entre a Bolívia com direito de posse que o Brasil lhe outorgara, e a revolução
que se tinha assenhorado do território.
Em
outubro, o primeiro enviado do governo revolucionário, Coronel João Passos,
homem simples, pouco instruído e sem compostura para tão alta missão, fora
recebido desdenhosamente, e tivera de regressar, após infrutíferas tentativas,
sem a adesão desejada.
Xapury,
era então o maior núcleo de população da zona, desde a linha Cunha Gomes ás
cabeceiras do Acre e do Purus com seus afluentes, e senão a parte mais rica, a
mais favorecidas de recursos naturais.
Aproximavam-se
a época da chegada dos vapores que urgia uma solução; no campo dos insurgentes
crescia a ansiedade; sem o nosso concurso o fracasso do movimento seria
inevitável.
Galvez,
reduzido a uma atividade burocrática, na gestão dos negocios da governança, era
embryonária cidade do Acre, com honras de Capital da República, servindo por
meia dusia de auxiliares, sem meios pecuniários e já ameaçado de beri-beri que
ia grassando nos seringais, compreendeu que só a sua presença, realçada de
vistoso aparato scenico, poderia influenciar no espírito daquele povo
obstinado, e interessal-o na sua temerária aventura.
Do
espolio do bolivianos lhe ficara uma lancha, que logo armou em guerra;
guarneceu-a com soldados, deu-lhes um aspecto animador de força regular,
garridos uniformes, cornetas, tambores, e ar marcial, e munido de conforto
possível em tão exígua embarcação subiu ao Xapury, sob a algazarra de apitos,
tiros e clarius, incutindo o terror e provocando as aclamações da população
ribeirinha.
Ali,
como um conquistador, aportou em principio de dezembro, quando já começavam a
subir as águas que deviam trazer os vapores com os carregamentos do inverno.
O
afeito foi decisivo; mal a lancha aparece, garridamente embandeirada, com o seu
ancoradouro; recebido com festas excepicionais, dentro em pouco Galvez tinha
convertido ao seu credo os mais recalcitrantes.
Foi
assim que o vi, recebendo cerimoniosamente, muito correto no seu costume de
casimira clara, alto e magro, meio curvado sobre em bastão em que se apoiava,
tendo na mão um chapéu de abas, com que ia correspondendo as saudações do povo
apinhado nos barrancos do rio.
Toda
a minha prevenção contra o aventureiro que vinha misteriosamente, ensinando
lições de patriotismo, trazendo a mesma origem e falando a mesma língua dos
nossos inimigos, desapareceu, como por encanto, entre aquela figura de ancião
precoce, magnífico na sua missão de reivindicador, tão cortez nos modos, tão
meticuloso nos gestos, dominando e seduzindo com a sua palavra fácil e correta,
onde procurava dissimular, punha uma nota impressionante de exotismo e de
mistério.
A
tez branca, fortemente corada, emoldurando o rosto cumprido e de linhas suaves
no leve aloirado dos cabelos e da barba muito fina e rala, que ele conservava
inculta, os olhos claros e vivos, brilhando perspicases através das fortes
lunetas de míope, davam-lhe um aspecto singular e romântico de personagem de
lenda, que iam impressionando quanto delle se acercavam.
Galvez
teria quando muito 40 anos de idade, mais quem o visse, meio alquebrado,
guardando uma gravidade severa e um ar de reserva muito estudado, não lhe daria
de certo menos de 60. Inspirava simpatia e respeito ao mesmo tempo, e falando,
ninguém lhe resistia à sedução natural com que abordava todos os assuntos,
sabendo prender e lisongear a quem o ouvia, mesmo aquelles que se mostravam
contrário às suas idéias.
Não
lhe quero estudar os motivos que o
levaram aquela perigosa aventura, mas, si razões tenho para desconfiar da
providade que engendrou a sua missão no Acre, posso assegurar, entretanto, que
dela se compenetrou sinceramente quando lhe compreendeu a importância, e
serenamente se deixaria sacrificar pela sua vitória. O seu modo de proceder,
cheio de convicção e patriotismo, o resgataria sobejamente de todo o subalterno
interesse que porventura lho houvesse induzido a ela.
A
Luiz Galvez cabe incontestavelmente o espírito de independente e de revolta que
Plácido de Castro encontrou no Acre; foi ele que ali implantou a semente da
rebelião contra os invasores.
Sofreu
muitos revezes, não dos bolivianos, com quem quasi não chegou a terçar armas,
dos próprios acreanos, desconfiados que sempre lhe foram.
De
volta de Xapury, na madrugada de 31 de dezembro, foi deposto no Riosinho pelas
forças do Capitão Antonio de Souza Braga, sendo mais tarde, a proeminente
figura nos movimentos que se seguiram; reposto, porém, dias depois, pelos
mesmos que o tinham desautorado, permaneceu no governo por alguns meses, até
que, pior imposição do governo federal, que sempre andou preso aos tratados com
a Bolívia, foi retirado do Acre, pelo governo do Amazonas, que se tinha
gravamente comprometido no movimento.
Expulso
do território brasileiro, perambulou pelas Republicas da América Central, indo afinal, falecer em Madri, sua
pátria, no dia 10 de outubro de 1900.
Conservo
dele, com carinho que merecem, documentos originais que me foram por ele
confiados, e, só por curtesa de espaço, deixo de transcrever, deixo de
transcrever ao menos uma das suas cartas ao conselheiro Ruy Barbosa, que daria
uma idéia do seu acendrado amor à causa que abraça, e da felicidade com que
sabia manejar a nossa língua.
Na
história do Acre, que ainda se não escreveu, ele é figura primeira; e se lhe
faltavam as fortes qualidades que fizeram de Plácido de Castro um vencedor,
sobravam-lhe, em compensação, aquelas que em outras circunstancias, aliadas à
posição pro-eminente que ocupou, e com o apoio unânime de uma nação rica e
respeitada, deram ao Barão do Rio Branco uma aureola imortal de celebridade.
Ao
lado, pois, de José Plácido de Castro, manda a justiça, que o futuro historiador
do Acre, ponha, com igual relevo, o seu precursor Luiz Galvez Rodrigues de
Arias.
Soares
Bulcão.
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