segunda-feira, 18 de abril de 2016

Luiz Galvez

PERIÓDICO: PORTO ACRE – Orgam do Partido Constructor Acreano
DATA: Anno II – 21 de Junho de 1914 – Nº 33
LOCAL: Porto Acre – Departamento do Alto Acre
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LUIZ GALVEZ


Figuras há, de tão características e impressionantes, que vistas uma vez, mesmo de relance,  ficam-nos impressas indelevelmente na imaginação, e jamais o tempo consegue varre-las de nossa memória; outras, de tão comuns e desinteressantes, por mais que se procure reter-lhes as fisionomias, após mesmo acurado convívio, evaporam-se à primeira ausência, confundindo-se com a vulgaridade de tantas outras que ai passam, sem deixar um traço, uma lembrança, um ponto de reconhecimento.
Luiz Galvez, o inditoso aventureiro hespanhol que proclamou o Estado Independente do Acre, a 14 de Junho de 1899, era dos que, uma vez vistos, jamais serão esquecidos.
Foi em dezembro daquele ano tumultuoso, que o vi pela primeira vez, a bordo de uma lancha armada em guerra, a que a sua fidalga fantasia guerreira dera o pomposo nome de Aviso Liberdade. Nella elle surgia com o seu cortejo faltoso, em viagem de propaganda revolucionaria, à povoação de Xapury, ate então indecisa na sua adesão à causa dos revoltosos contra os bolivianos, já expulsos do Acre desde o primeiro de Maio.
A ação do governo constituinte em julho sob a presidência de Galvez, ficara circunscrita ao baixo Acre, dominando pacificamente, sem inimigos a combater na região, senão simplesmente adversários, brasileiros que se tinham aliados aos invasores, autoridades destituídas em virtude da rebelião, entre os quais, o mais poderoso deles, o Capitão Antonio Leite Barbosa, impenitente e insubmisso, e conspirava dentro de seus grandes seringais Humaytá e Curuparity.
O verão fora longo e seco naquele ano memorável para a historia do povo acreano, e as comunicações com o alto Acre, cada dia mais difíceis desde Junho, iam-se cortando definitivamente, deixando-nos isolados do mundo, naquela longingua região inhospita, onde a vida seria um sacrifício, si na intimidade de um pequeno núcleo de familisa que compartilhavam das agruras da terra, não encontrássemos as doçuras de carinhoso e fraternal acolhimento.
Vagamente, por vias desconhecidas, chegavam a Xapury as noticias da agitação reinante, mas os boatos, sempre alarmantes e contraditórios, surgiam não se sabia como, levados boca à boca, pelo interior dos seringais e enchiam a população de terrores e sobressaltos.
Na incerteza do que se passava no theatro dos acontecimentos, mal sabendo que já não havia bolivianos no Acre, tínhamos resistido a toda sedução revolucionaria. Nem acreditamos na seriedade dos promotores do levante, desconhecido que nos era o estrangeiro que o chefiava, nem tão pouco confiamos na possibilidade da Victoria, que bem sabimos a falência de recursos em que cairíamos, se o comercio aviador, justamente alarmado, não nos mandasse as suas mercadorias. Continuávamos brasileiros, abrigados obstinadamente sob a bandeira da pátria, entre a Bolívia com direito de posse que o Brasil lhe outorgara, e a revolução que se tinha assenhorado do território.
Em outubro, o primeiro enviado do governo revolucionário, Coronel João Passos, homem simples, pouco instruído e sem compostura para tão alta missão, fora recebido desdenhosamente, e tivera de regressar, após infrutíferas tentativas, sem a adesão desejada.
Xapury, era então o maior núcleo de população da zona, desde a linha Cunha Gomes ás cabeceiras do Acre e do Purus com seus afluentes, e senão a parte mais rica, a mais favorecidas de recursos naturais.
Aproximavam-se a época da chegada dos vapores que urgia uma solução; no campo dos insurgentes crescia a ansiedade; sem o nosso concurso o fracasso do movimento seria inevitável.
Galvez, reduzido a uma atividade burocrática, na gestão dos negocios da governança, era embryonária cidade do Acre, com honras de Capital da República, servindo por meia dusia de auxiliares, sem meios pecuniários e já ameaçado de beri-beri que ia grassando nos seringais, compreendeu que só a sua presença, realçada de vistoso aparato scenico, poderia influenciar no espírito daquele povo obstinado, e interessal-o na sua temerária aventura.
Do espolio do bolivianos lhe ficara uma lancha, que logo armou em guerra; guarneceu-a com soldados, deu-lhes um aspecto animador de força regular, garridos uniformes, cornetas, tambores, e ar marcial, e munido de conforto possível em tão exígua embarcação subiu ao Xapury, sob a algazarra de apitos, tiros e clarius, incutindo o terror e provocando as aclamações da população ribeirinha.
Ali, como um conquistador, aportou em principio de dezembro, quando já começavam a subir as águas que deviam trazer os vapores com os carregamentos do inverno.
O afeito foi decisivo; mal a lancha aparece, garridamente embandeirada, com o seu ancoradouro; recebido com festas excepicionais, dentro em pouco Galvez tinha convertido ao seu credo os mais recalcitrantes.
Foi assim que o vi, recebendo cerimoniosamente, muito correto no seu costume de casimira clara, alto e magro, meio curvado sobre em bastão em que se apoiava, tendo na mão um chapéu de abas, com que ia correspondendo as saudações do povo apinhado nos barrancos do rio.
Toda a minha prevenção contra o aventureiro que vinha misteriosamente, ensinando lições de patriotismo, trazendo a mesma origem e falando a mesma língua dos nossos inimigos, desapareceu, como por encanto, entre aquela figura de ancião precoce, magnífico na sua missão de reivindicador, tão cortez nos modos, tão meticuloso nos gestos, dominando e seduzindo com a sua palavra fácil e correta, onde procurava dissimular, punha uma nota impressionante de exotismo e de mistério.
A tez branca, fortemente corada, emoldurando o rosto cumprido e de linhas suaves no leve aloirado dos cabelos e da barba muito fina e rala, que ele conservava inculta, os olhos claros e vivos, brilhando perspicases através das fortes lunetas de míope, davam-lhe um aspecto singular e romântico de personagem de lenda, que iam impressionando quanto delle se acercavam.
Galvez teria quando muito 40 anos de idade, mais quem o visse, meio alquebrado, guardando uma gravidade severa e um ar de reserva muito estudado, não lhe daria de certo menos de 60. Inspirava simpatia e respeito ao mesmo tempo, e falando, ninguém lhe resistia à sedução natural com que abordava todos os assuntos, sabendo prender e lisongear a quem o ouvia, mesmo aquelles que se mostravam contrário às suas idéias.
Não lhe quero estudar os motivos que  o levaram aquela perigosa aventura, mas, si razões tenho para desconfiar da providade que engendrou a sua missão no Acre, posso assegurar, entretanto, que dela se compenetrou sinceramente quando lhe compreendeu a importância, e serenamente se deixaria sacrificar pela sua vitória. O seu modo de proceder, cheio de convicção e patriotismo, o resgataria sobejamente de todo o subalterno interesse que porventura lho houvesse induzido a ela.
A Luiz Galvez cabe incontestavelmente o espírito de independente e de revolta que Plácido de Castro encontrou no Acre; foi ele que ali implantou a semente da rebelião contra os invasores.
Sofreu muitos revezes, não dos bolivianos, com quem quasi não chegou a terçar armas, dos próprios acreanos, desconfiados que sempre lhe foram.
De volta de Xapury, na madrugada de 31 de dezembro, foi deposto no Riosinho pelas forças do Capitão Antonio de Souza Braga, sendo mais tarde, a proeminente figura nos movimentos que se seguiram; reposto, porém, dias depois, pelos mesmos que o tinham desautorado, permaneceu no governo por alguns meses, até que, pior imposição do governo federal, que sempre andou preso aos tratados com a Bolívia, foi retirado do Acre, pelo governo do Amazonas, que se tinha gravamente comprometido no movimento.
Expulso do território brasileiro, perambulou pelas Republicas da América  Central, indo afinal, falecer em Madri, sua pátria, no dia 10 de outubro de 1900.
Conservo dele, com carinho que merecem, documentos originais que me foram por ele confiados, e, só por curtesa de espaço, deixo de transcrever, deixo de transcrever ao menos uma das suas cartas ao conselheiro Ruy Barbosa, que daria uma idéia do seu acendrado amor à causa que abraça, e da felicidade com que sabia manejar a nossa língua.
Na história do Acre, que ainda se não escreveu, ele é figura primeira; e se lhe faltavam as fortes qualidades que fizeram de Plácido de Castro um vencedor, sobravam-lhe, em compensação, aquelas que em outras circunstancias, aliadas à posição pro-eminente que ocupou, e com o apoio unânime de uma nação rica e respeitada, deram ao Barão do Rio Branco uma aureola imortal de celebridade.
Ao lado, pois, de José Plácido de Castro, manda a justiça, que o futuro historiador do Acre, ponha, com igual relevo, o seu precursor Luiz Galvez Rodrigues de Arias.
Soares Bulcão.





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