História Nativa do Acre
Por Marcos
Vinicius Neves
A Amazônia
sul-ocidental é habitada há milhares de anos por diferentes povos nativos que
fizeram da grande região dos altos rios acreanos o seu território de viver,
sonhar e cultivar raízes. Muitos desses povos foram engolidos pela floresta
imensa sem deixar vestígios de sua passagem pela terra. Outros enfrentaram
inimigos poderosos mas resistiram o suficiente para ainda saber quem são.
Porém, esses povos milenares permanecem ainda hoje, em grande parte, desconhecidos
da maioria da sociedade acreana. É preciso perceber que nossa história guarda
muitas das marcas que foram escritas precisamente por estes povos.
Os tempos
da história indígena
Quando é
preciso justificar o direito dos povos indígenas ao seu território tradicional
se diz que essas terras já pertenciam a eles desde tempos imemoriais. Porém,
esta idéia reforça o preconceito segundo o qual os povos indígenas não possuem
história, porque não dominam a escrita e sua memória é baseada na tradição oral.
Talvez fosse mais sincero admitir que somos nós, os não-índios, que temos
dificuldade de compreender a história indígena.
A melhor
prova disso é que do longo e consistente trabalho de educação diferenciada que
a CPI-AC, e mais recentemente também o governo estadual, desenvolvem junto às
comunidades indígenas acreanas e do sul do Amazonas, emergiu uma interessante
forma de organizar a história nativa da região. E quando olhamos para essa
temporalidade estabelecida a partir das referências indígenas percebemos que
ela conta também a história da própria sociedade acreana.
Este texto é
uma tentativa de reunir algumas informações sobre os povos nativos do Acre
utilizando uma adaptação daquela temporalidade utilizada nas escolas indígenas.
Aos tempos das malocas, das correrias, do cativeiro, dos direitos e do presente
acrescentamos o tempo de antigamente para incluir as informações da
pré-história. Com isso não pretendemos mais do que acrescentar profundidade a
essa história de um povo que não desistiu nunca de lutar pelos seus direitos,
um povo formado igualmente por brancos e índios.
Tempo de
antigamente
A longa
história do povoamento humano do Acre provavelmente começa entre 20.000 e
12.000 anos atrás, quando os primeiros grupos humanos provenientes da Ásia chegaram
de sua longa migração até a América do Sul. Esses grupos humanos perseguiam as
grandes manadas de animais gregários que durante a idade do gelo se espalhavam
pelas vastas savanas do mundo. A Amazônia era então uma ampla extensão dessas
savanas, com apenas algumas manchas de floresta ao longo dos rios que cortavam
as terras baixas.
Era o tempo
dos grandes animais como o mastodonte, a preguiça gigante (megatherium), o
toxodonte e diversos outros exemplares de megafauna que serviam de base
alimentar para aqueles bandos de caçadores nômades. Esses animais se
extinguiram com o fim do pleistoceno, a ultima das grandes idades do gelo, e
seus fósseis são localizados ainda hoje nos barrancos de muitos dos rios
acreanos. Apesar de ainda não terem sido encontrados vestígios concretos da
presença humana na região durante esse mesmo período, podemos imaginar que o
homem aqui já estivesse, junto com os animais que caçava.
Com o passar
do tempo, a partir de 12.000 anos atrás, o clima do planeta começou a esquentar.
Isso ocasionou um aumento da umidade e expansão dos sistemas florestais.
Enquanto os últimos remanescentes da megafauna desapareciam por causa da
retração das áreas de pastagem, a floresta se expandia. Isso favoreceu a
proliferação de uma fauna terrestre de pequeno porte e da fauna aquática
através do crescimento dos cursos d’água que ficaram cada vez mais caudalosos.
Esse tempo de
profundas mudanças climáticas e ambientais deu oportunidade para o surgimento
de novas formas de organização social. Os grupos humanos pré-históricos da
América passaram a contar com recursos alimentares mais diversificados, graças
ao ambiente de florestas tropicais, e lentamente começaram a desenvolver as
primeiras experiências de domesticação de plantas e animais. Enquanto na
América Central e nos Andes teve inicio o cultivo do milho e de outras
sementes, nas terras baixas da Amazônia ocorriam as primeiras experiências do
plantio de raízes - especialmente da mandioca - que se tornariam a base
alimentar desses grupos.
Isso marcou o
surgimento, por volta de cinco mil anos atrás, do que os pesquisadores chamam
de Cultura de Floresta Tropical, caracterizada por grupos que praticavam uma
agricultura ainda insipiente, complementada pela caça, pesca e coleta de frutos
e sementes da floresta. A partir dessa nova organização social os grupos
pré-históricos amazônicos passaram também a fabricar cerâmica e a ocupar certos
locais por períodos mais prolongados. Com isso deixaram grandes sítios
arqueológicos que testemunham seu florescimento por toda a Amazônia.
No Acre, as
pesquisas realizadas pelo Instituto de Arqueologia Brasileira nas décadas de 70
a 90 revelaram a presença de duas grandes tradições ceramistas no estado. A
primeira foi identificada nos vales dos rios Purus e Acre e denominada
“Tradição Quinari”, enquanto que a segunda está situada nos vales dos rios
Juruá, Tarauacá e Muru e recebeu o nome de “Tradição Acuriá”.
A presença de
duas distintas tradições ceramistas nos dois maiores vales acreanos parece
indicar que a diferenciação histórica e cultural da população dos vales do
Juruá e Purus é mais antiga do que se pensava. Entretanto, nem todos os sítios
arqueológicos já localizados no Acre estão classificados numa dessas duas
tradições ceramistas, podendo ser identificadas ainda outras tradições
pré-históricas na região.
É o caso, por
exemplo, dos misteriosos círculos de terra que aguçam a curiosidade dos que
sobrevoam a área onde são mais comuns. Os geoglifos, como vêm sendo ultimamente
chamados, são grandes sítios com formas geométricas - círculos, quadrados,
hexágonos e diversas outras composições - que variam entre 350 e 150 metros de
diâmetro.
Aparecem
principalmente em duas áreas: no divisor de águas entre os rios Acre e Xipamanu
e no divisor de águas entre os rios Acre e Iquiri. Essa localização revela que
os povos que construíram essas misteriosas figuras com terra local, tinham
preferência pela ocupação da terra firme em vez de habitarem ao longo das
margens dos principais rios da região.
Quanto à
razão que levava esses grupos pré-históricos a construir as grandes estruturas
de terra - que tanto poderiam servir para defesa, como para a agricultura, ou
mesmo para a realização de festas e ritos - ainda não se pode afirmar nada.
Porém, uma coisa é certa: não se tratam de sinais deixados por extraterrestres
no solo acreano, na linha do “eram os deuses astronautas”. Já que a maioria
desses sítios apresenta cerâmica arqueológica, o que indica que foram
construídos, utilizados e talvez habitados por grupos indígenas pré-históricos.
Apesar de
ainda não possuirmos dados resultantes da análise do material arqueológico
desses sítios, as primeiras informações mostram que os geoglifos parecem
guardar algumas relações com ocorrências arqueológicas do Llano de Mojos,
região alagável e muito fértil ao norte da Bolívia, onde foram construídos
grandes aterros para agricultura durante a pré-história. O que reforça os
indícios de contatos prolongados entre as civilizações andinas e os povos da
Amazônia ocidental desde muito antes do que se imagina. Mas só a realização de
novas pesquisas arqueológicas será capaz de responder essas e outras questões
sobre nosso mais distante passado.
Tempo das
Malocas
Em linhas
gerais a ocupação indígena dos altos rios Purus e Juruá correspondia a uma
divisão territorial entre dois grandes grupos lingüísticos que apresentavam
significativas diferenças. No Purus havia o predomínio, mas não a
exclusividade, de grupos falantes das línguas Aruan e Aruak, do mesmo tronco
lingüístico. Já no vale do Juruá havia o predomínio, também não exclusivo, de
grupos falantes da língua Pano. Essa divisão territorial por vales entre grupos
lingüísticos dominantes parece ter sido semelhante àquela que os arqueólogos
detectaram através das tradições Quinari e Acuriá. Mas o registro histórico e
lingüístico apontou que além dessa divisão aparentemente simples, havia também
grupos falantes da língua Katuquina nos afluentes situados entre o médio Purus
e o médio Juruá, ao norte do atual estado do Acre, já em terras do Amazonas.
Além disso, havia outros povos de línguas Pano e Takana, ambas do mesmo tronco
lingüístico Pano, que se encontravam mais ao sul, no alto curso do rio Acre, no
Abunã, no Xipamanu e no Madre de Dios até sua confluência com o rio Madeira.
Para
facilitar a compreensão desse quadro, levando em consideração não somente os
limites do atual estado do Acre, mas também as áreas imediatamente vizinhas que
integram a grande região indígena da Amazônia sul-ocidental, podemos dizer que
esses povos indígenas estavam distribuídos em cinco grandes grupos:
1 - No
médio curso do rio Purus, hoje estado do Amazonas, habitavam povos de lingua
Aruan, do tronco Aruak. Grupos pouco aguerridos eram comumente submetidos por
outros grupos mais fortes ou se refugiavam na terra firme, espalhando-se por
diversos afluentes de ambas as margens do médio Purus. Entre os diferentes
grupos dessa região estavam os Jamamadi, os Kamadeni e muitos outros já
desaparecidos. Recentes análises de lingüistas atribuem a essa família uma
antigüidade de cerca de 2.000 anos.
2 - No
alto curso do rio Purus e no baixo rio Acre estavam estabelecidas diversas
tribos do tronco lingüístico Aruak. Subindo esses rios, do norte para o sul,
habitavam os Apurinã, os Manchineri, os Kulina, os Canamari, os Piros, os
Ashaninka e outros. Na verdade, estes grupos se espalhavam desde a confluência
do Pauini com o Purus até a região das encostas orientais dos Andes, desde
aproximadamente 5.000 anos atrás. E chama a atenção como puderam se manter por
tanto tempo no domínio de uma região tão vasta e tão rica ecologicamente. A
pré-história registra que muito antes de resistir ao avanço dos homens brancos
sobre suas terras, os Aruak ou Antis, como eram chamados pelos Incas, já haviam
resistido com sucesso à chegada dos falantes da língua Pano e a expansão das
civilizações andinas.
3 - No
alto curso do rio Acre, alto Iquiri, Abunã e outros afluentes do rio Madeira já
em território boliviano, havia um enclave de grupos falantes de lingua Takana e
Pano. Alguns bastante aguerridos, como os temidos Pacaguara, outros mais
sociáveis como os Kaxarari que mantinham ativo contato com os Apurinã, apesar
das diferenças lingüísticas e culturais entre os dois grupos. Mesmo pertencendo
ao tronco lingüístico Pano, a língua Takana é de origem mais recente, tendo
surgido entre 3.000 e 2.000 anos atrás.
4 - Na
região intermediária entre o médio curso do Purus e o Juruá, ao norte do Acre,
habitavam os falantes da língua Katukina, sobre os quais se tem pouca
informação. Algumas características destes grupos apontam para um surgimento
relativamente recente, há cerca de 2.000 anos. Esses grupos pouco numerosos
ficavam apertados entre os povos Aruak ao leste e os Pano a oeste, restando a
eles a exploração das terras firmes, menos ricas em suprimento alimentar que as
margens dos grandes rios.
5 - Boa
parte do médio e alto curso do rio Juruá, bem como a maior parte de seus
afluentes - como o Tarauacá, o Muru, o Envira, o Moa e daí por diante - era
dominado por diversos e numerosos grupos de falantes da língua Pano. Eram Kaxinawá,
Jaminawá, Amahuaca, Arara, Rununawá, Xixinawá e muitas outras denominações
tribais. Todos fazendo parte de um tronco lingüistico muito antigo, com cerca
de 5.000 anos, mas que teria se originado em outra região, invadindo só mais
recentemente as terras acreanas. Com seu caráter guerreiro, os Pano
conquistaram seu território através da guerra contra tribos de outras línguas,
mas também contra grupos do mesmo tronco. Isso explica, em parte, a grande
fragmentação que as muitas tribos Pano apresentavam quando finalmente os
brancos começaram a chegar na região.
É claro que a
simples divisão lingüística dos grupos nativos do Acre nos últimos cinco mil
anos esconde a grande variedade de culturas indígenas e a complexa
territorialidade estabelecida a partir das alianças e rivalidades tribais. Como
entre os Apurinã e os Manchineri, nos rios Purus e Iaco, onde foi estabelecido
um amplo território despovoado que servia para evitar contatos e conflitos, já
que esses dois grupos Aruak viviam em guerra. Por outro lado, existem registros
do estabelecimento de aldeias conjuntas de grupos Aruak e Pano, para resistir
ao avanço das ordens religiosas pelo vale do Ucayali a partir do século XVII.
Mesmo com
tantas histórias de conflitos, durante os milhares de anos em que as aldeias
foram compostas por grandes malocas coletivas, o povo vivia do que lhes dava a
floresta e se podia fazer grandes festas por ocasião da colheita estabelecendo
um sutil equilíbrio econômico, ecológico e social na região. Ao se iniciar o
século XIX, cada grupo familiar ou tribal possuía territórios claramente
definidos e os relacionamentos entre esses grupos obedeciam não só às
semelhanças étnicas e culturais, mas também às alianças que foram sendo
estabelecidas ao longo do tempo.
Algumas
informações indicam que havia extensas redes de comércio e comunicação cortando
os diversos vales acreanos e por elas chegavam notícias e produtos de áreas
longínquas. Chandless, em sua viagem ao rio Aquiri, noticiou que os Apurinã
comumente recebiam dos Kaxarari pedras trazidas dos rios Abunã e Madeira para
fabricar lâminas de machado, enquanto que os Manchineri já possuíam diversos
objetos de metal, provavelmente resultado de comércio feito com peruanos.
Outros relatos contam que era possível sair do rio Javari e, utilizando a vasta
rede indígena de caminhos e varações, chegar ao vale do rio Madeira depois de
uns poucos dias de viagem, em passo de indio é claro!
Por isso,
desde os grupos indígenas mais fortes e numerosos que ocupavam as várzeas dos
rios até os menores grupos familiares que perambulavam pelas cabeceiras, todos
possuíam liberdade e com ela a possibilidade de ser feliz.
Tempo das
correrias
Quando, a
partir de 1860, começaram a acontecer as primeiras viagens de exploração se
constatou, não só a presença indígena, mas a grande riqueza natural dos rios
acreanos, despertando a cobiça dos exploradores. Já em 1870 tinha início uma
verdadeira corrida do ouro que fez com que em poucos anos os rios acreanos
fossem tomados de assalto. Milhares de homens vindos de todas as partes do
Brasil e do mundo passaram a subir os rios estabelecendo imensos seringais em
suas margens. Era a febre provocada pelo ouro negro, a borracha extraída da
seringueira que depois de defumada era exportada para abastecer as indústrias
européias e norte-americanas, cada vez mais ávidas por esse produto.
Em 1878 a
empresa seringalista alcançava a boca do rio Acre subjugando todo o médio Purus
e já em 1880 ultrapassava a linha Cunha Gomes, limite terminal das fronteiras
legais brasileiras. Ao mesmo tempo os caucheiros peruanos vindos do sudoeste
cortavam a região das cabeceiras do Juruá e do Purus, enquanto que os primeiros
seringalistas bolivianos começavam a se expandir pelo vale do Madre de Dios e
invadiam as terras acreanas pelo sul. Em poucos anos, os povos nativos da
região se viram cercados por brasileiros, peruanos e bolivianos, sem ter para
onde fugir ou como resistir a enorme pressão que vinha do capitalismo
internacional que dependia da borracha amazônica.
De senhores
desta terra os povos nativos da Amazônia sul-ocidental passaram a ser vistos
como obstáculos a exploração da borracha e do caucho na região. Foi quando
surgiu a prática das correrias: expedições armadas feitas com o objetivo de
matar as lideranças das aldeias, aprisionar homens para o trabalho escravo e
obter mulheres que seriam vendidas aos seringueiros. Foi um tempo de terror.
São muitos os relatos de correrias quando, depois de queimadas as malocas e
mortos os principais guerreiros, os vencedores se divertiam jogando as crianças
para cima e aparando-as com a ponta do punhal numa demonstração cruel de
habilidade no manejo das armas.
Como se isso
não bastasse, junto com os brancos chegaram também muitas doenças contra as
quais os índios não possuíam resistência. O sarampo, a gripe, a tuberculose e
outras doenças rapidamente se alastraram entre os grupos indígenas da região
dizimando aldeias inteiras diante dos pajés que não sabiam como curar aquelas
moléstias desconhecidas.
Ainda assim a
reação dos diferentes grupos indígenas acreanos a chegada dos não-índios foi
tão variada como eram diversificadas as culturas aqui presentes. Uma boa parte
das tribos de lingua Aruan e Aruak, como os Jamamadi, Apurinã, Manchineri e
Ashaninka decidiram colaborar em certa medida com os brancos. Muitos índios
tornaram-se remadores, guias, mateiros, seringueiros. Algumas aldeias passaram
a se relacionar com seringais negociando os produtos da caça ou de sua lavoura
em troca de ferramentas, armas e objetos dos brancos.
Por outro
lado, os grupos de lingua Pano, em linhas gerais, resistiram à invasão de seus
territórios ancestrais, evitando contatos ou relações de qualquer espécie com
os brancos. O resultado imediato foi a perseguição e o extermínio de todos os
grupos que dificultavam a abertura dos seringais ou a extração do caucho. A
perseguição promovida contra os índios foi intensa e certos grupos começaram a
esconder sua identidade, como um pequeno grupo de Jaminawá que passou a se
dizer Katukina para evitar a perseguição.
Essa dura
realidade de confrontos perdurou pelos primeiros trinta anos da ocupação
não-índia da região. Entre 1880 e 1910 o ritmo da exploração da região só
aumentou levando ao extermínio de inúmeros grupos indígenas. Como os Canamari
que desapareceram da grande floresta, ou os Takana que migraram para o sul até
a Bolívia para nunca mais retornar ao território acreano, ou ainda os Apurinã
que tiveram seus vastos domínios reduzidos a ponto de não possuírem hoje
nenhuma terra indígena demarcada no estado do Acre, parte de seu território
ancestral.
Tempo do
cativeiro
As
conseqüências da febre do ouro negro foram terríveis para os grupos indígenas
da Amazônia. Nem o fim do primeiro ciclo da borracha, em 1913, diminuiu a
pressão sofrida por esses grupos já tão enfraquecidos. Diante dessa nova
realidade, com grandes e poderosos seringais espalhados por todos os principais
rios, nunca mais seria possível retomar as antigas formas de organização
social. Alguns pequenos grupos ainda conseguiram se refugiar nas cabeceiras
mais isoladas, mas a grande maioria dos índios do Acre foi obrigada a se
modificar para não desaparecer. Passaram a adotar então o modelo de casa
cabocla que o branco utilizava, começaram a depender das ferramentas dos
brancos, foram perdendo suas línguas maternas e aprendendo o português ou o
espanhol.
Começava
assim uma etapa da história dos povos nativos do Acre que se estendeu por um
longo período, entre 1910 e 1980. A acentuada queda nos preços internacionais
da borracha fez com que ficasse cada vez mais difícil trazer nordestinos para o
corte da seringa. O gradativo esvaziamento dos seringais da região levou a
necessidade cada vez maior do aproveitamento dos índios como mão de obra.
Muitos foram os patrões que reuniram grupos dispersos de diversas etnias para
trabalharem em seus seringais. Alguns desses patrões chegaram a ser
reconhecidos como amigos dos índios, como Ângelo Ferreira, famoso amansador de
índios, que reuniu muitos Kaxinawá, Jaminawá e Kulina, entre outros para
trabalhar sob suas ordens. Mas a maioria dos patrões tratava os índios ainda
pior do que os seringueiros. Afinal de contas, como não sabiam ler e pouco
entendiam da língua dos brancos, os índios eram enganados no peso da borracha,
no preço da mercadoria, na desvalorização de seus produtos, no pagamento da
renda anual da estrada de seringa. Com isso os índios acumulavam enormes
dívidas com os barracões dos seringais e acabavam se tornavam prisioneiros de
seus patrões.
Quanto aos
pequenos grupos indígenas que conseguiram se refugir no centro da mata ou nas
cabeceiras, os índios “brabos” como ainda são tratados, foram caçados
sistematicamente para serem “amansados” e assim poderem ser incorporados à
nossa sociedade. Ainda assim, alguns destes grupos conseguiram escapar ao
domínio dos não-índios e resistiram ao cerco cada vez mais apertado da nossa
civilização, perambulando sempre, sem parar nunca, varando pela região das
cabeceiras onde os rios e os brancos não chegam.
Tempo dos
direitos
Durante sete
décadas de cativeiro os povos nativos do Acre sofreram uma enorme degradação de
suas culturas tradicionais. O peso dos preconceitos da sociedade não-índia, a
expropriação de suas terras ancestrais, a falta de políticas de assistência, de
educação ou de saúde, levou-os a uma grave condição econômica e social.
Essa situação
só começou a mudar a partir de 1976 com a instalação da primeira Ajudância da
Funai do Acre e sul do Amazonas. Começava assim uma longa luta pela demarcação
das terras ancestrais dos povos nativos do Acre.
Boa parte
dessa luta foi empreendida por diversas entidades indígenistas
não-governamentais, como a CPI, o COMIN e o CIMI, mas principalmente pelas
próprias lideranças indígenas que ao mesmo tempo em que adquiriam consciência
de seus direitos passaram a buscar a organização de um movimento indígena
politicamente articulado. Surgiram, então, em diversas aldeias as primeiras
cooperativas que proporcionaram condições objetivas para que as comunidades se
libertassem do domínio dos patrões.
Não se deve
imaginar que esse processo se deu sem conflitos. Pelo contrário, os patrões que
se achavam com direitos sobre as terras e gentes não estavam dispostos a abrir
mão de nada disso. Para complicar ainda mais a situação, o processo de venda
dos seringais acreanos para os “paulistas”, que havia sido iniciado no
governo Dantas, trouxe para a região grandes empresas com interesses e projetos
agropecuários que provocaram a expulsão dos seringueiros de suas terras. Isso
resultou em muitas emboscadas, histórias de pistoleiros e jagunços, mortes
anunciadas ou não. Mas foi graças ao acirramento dos graves conflitos sociais
que se alastraram por toda a região que surgiu a Aliança dos Povos da
Floresta - formada por índios, seringueiros e ribeirinhos - que mesmo às
custas do sangue de muitos conseguiu barrar o avanço da exploração predatória
das florestas acreanas.
Tempo
Presente
Felizmente a
história da Amazônia Ocidental pode registrar que essa luta, que hoje não é só
dos povos nativos mas de boa parte da sociedade acreana, vem obtendo resultados
positivos. Atualmente são vinte e oito terras indígenas já demarcadas e
asseguradas para os povos nativos da região, mas ainda falta conseguir a
regularização de outras quinze terras indígenas. É preciso ter pressa para
obter as mínimas condições de sobrevivência para nossas populações ancestrais e
a terra é uma dessas condições essenciais.
Grandes
conquistas já foram obtidas. Hoje existe uma educação diferenciada para os
povos indígenas que é fruto de um longo e maduro trabalho de muitos indígenas e
indigenistas. Hoje existem diversos agentes de saúde indígenas que dão
assistência permanente às suas comunidades. Hoje já começam a se colher os
primeiros frutos do trabalho dos agentes agro-florestais indígenas que estão
incorporando a parte boa da tecnologia a favor de seus parentes. Mas ainda há
muito a se conquistar pois o tempo dos direitos esta só começando.
Não deixa de
ser muito importante o fato de que no mesmo ano em que a sociedade não-índia
comemora o centenário da Revolução Acreana e da criação de um lugar no mundo
chamado Acre, aconteça também o III Encontro de Culturas Indígenas do Acre e
Sul do Amazonas, quando todas as etnias dessa milenar região invadem a cidade
de Rio Branco para cantar, dançar e anunciar seu direito à vida e à felicidade,
tão indios quanto aqueles isolados que ainda perambulam pelas intocadas
florestas das cabeceiras.
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